A fotógrafa Isis Medeiros lança o livro ’15:30′, precioso registro dos 5 anos do crime da Vale em Mariana

Por Alberto César Araújo*

Eram 15h30 de 5 de novembro de 2015, quando o Rio Doce começou a morrer. Naquela hora, a barragem do Fundão, em Mariana, se rompeu, levando mais de 62 milhões de metros cúbicos para a bacia hidrográfica.

O maior desastre ambiental do País – e o maior do mundo envolvendo uma barragem de rejeitos – é um crime que perdurará por anos.

Ambientalistas estimam que, daqui a um século, ainda se sentirá os efeitos da tragédia. Para a comunidade, os últimos cinco anos foram de luta, resistência, impunidade e injustiça.

Uma das moradoras atingidas pela lama tóxica do rompimento da
barragem do Fundão, em Mariana / Foto: Isis Medeiros

E é em torno dessa realidade que a fotógrafa mineira Isis Medeiros registrou mais de 8 mil imagens, 71 delas selecionadas para o livro ’15:30′, da editora Tona.

Ele foi lançado ontem, 30/11, com uma live que reuniu o líder indígena e autor premiado, Ailton Krenak (autor do prefácio do livro), a fotógrafa e documentarista Nair Benedito e a ativista Simone Silva, moradora de Mariana e membro do grupo de atingidos da Bacia do Rio Doce.

O livro está em pré-venda no site da Tona, nova editora de Belo Horizonte, que inicia sua jornada com Isis, focada em livros de fotografia contemporâneos..

Um outro olhar

Foto: Isis Medeiros

15:30 é a forma que a fotógrafa encontrou para denunciar questões que a perturbavam desde o rompimento da barragem controlada pela Samarco Mineração, empreendimento da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Billiton.

“Não foi fácil editar todo esse material. É bem grande e diverso. Vai desde as primeiras reuniões de atingidos pela barragem em Mariana, passando por retratos, visitas a comunidades, plenárias, manifestações, marchas e encontros até as últimas imagens das ruínas de Bento Rodrigues, quatro anos após o crime”, conta Isis. 

Isis conta que a cobertura do crime ambiental de Mariana mudou toda sua perspectiva como fotógrafa. 

Qual a melhor forma de contar sobre sofrimento, dor e indignação, através das imagens? São escolhas complexas, revisitar esse trabalho foi uma tarefa difícil”, relata ela.

Foi por meio do contato com os atingidos pela tragédia que a mineira decidiu se tornar fotojornalista e desenvolver um trabalho de denúncia com relação à atividade da mineração em Minas Gerais.

“Estar diante desse crime me fez sentir mais humana. Isso interferiu diretamente no meu fazer fotográfico, na minha abordagem e na aproximação das pessoas”.

Racismo ambiental

Ailton Krenak e os rejeito de minério no rio Watu / Foto: Rua Teixeira

O autor premiado, pensador e líder indígena Ailton Krenak escreveu o prefácio de 15:30. Para ele, a virtude do livro é justamente a espera de cinco anos, permitindo dar tempo para o desenrolar da história. Seria esperado que algo fosse feito para reduzir os danos, mas as imagens de Isis são um testemunho de que nada foi feito.

“Estou aqui, a 300 metros do rio Doce e, até hoje, eu e milhares de pessoas não podemos utilizar esta água, que para o meu povo é sagrada”, conta.

Krenak correlaciona o acidente em Minas com o que de resto continua ocorrendo em outras partes do mundo. E especificamente do Brasil, porque é aqui que as empresas têm os caminhos desimpedidos.

“Eles não fazem isso na Alemanha, eles vêm aqui, porque na periferia do mundo têm coragem de praticar essa violência desigual, que é o que acaba por caracterizar o racismo ambiental. Pois são corporações que atuam não somente aqui em Minas, mas também na Amazônia, como a Vale, Belo Sun, a Norsk, entre outras. Tirando não só as riquezas naturais, mas também o direto de populações se manifestarem”.

E questiona: “Teremos que voltar para o jus esperneandi, o direito romano de espernear, Já que elas (corporações) não têm esse compromisso com as populações e o futuro?”.

Escola atingida pela lama tóxica / Foto: Isis Medeiros

Barragens na Amazônia, grande ameaça

Sejam para contenção de rejeitos minerais, sejam para represar os rios para geração de energia nas hidrelétricas como Belo Monte, as barragens na Amazônia são uma grande ameaça para as populações tradicionais na Amazônia, segundo Krenak. Os povos da floresta têm que ficar atentos e lutar contra esse plano em defesa de seus territórios.

“Veja o caso dos Xikrins. Ouvi relatos de que estão descendo pelo Rio Cateté, dejetos de mineração, uma contaminação muito grande”, alerta Krenak. Para o líder indígena, os garimpeiros que atuam na Amazônia não tão são diferentes das corporações.

Impulsionados pelo discurso do atual desgoverno de Bolsonaro, perpetram várias violações de direitos, cometendo, não só crimes ambientais, mas danos à natureza e comprometendo a vida dos animais e dos seres que habitam as florestas. E ele vê essa situação como um projeto do governo federal para a Amazônia.

O crime cometido em Minas é uma ameaça permanente para várias comunidades da Amazônia. Só no estado do Pará, há 21 barragens abandonadas e em situação de risco de rompimento, que foram relacionadas em relatório da Agência Nacional de Mineração.

Entre elas, duas barragens da Vale estão entre as dez mais perigosas do Brasil e a empresa, dona da Samarco, tem negligenciado o risco que as estruturas apresentam nos últimos anos, apesar das notificações do Ministério Público Federal.

A Vale é controladora também da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Em 25 de janeiro de 2019, portanto, quatro anos depois de Mariana, o rompimento dessa barragem levou à morte de 259 pessoas e ao desaparecimento de outras 11.

Um livro para Brumadinho

A fotodocumentarista, em conversa com a agência Amazônia Real por telefone direto do litoral baiano, afirmou que ainda tem planos de lançar um livro sobre Brumadinho, onde fez uma documentação diferente de Mariana, já com mais experiência e outro foco.

Em Mariana, foi um estágio que a preparou para uma situação muito pior que foi em Brumadinho. 

Isis ainda tem planos de passar uma temporada viajando pelo Brasil, inclusive pela Amazônia. Ela já chegou a documentar a população ribeirinha em Iranduba, próximo de Manaus.

A fotógrafa vê a documentação da Amazônia com foco no desmatamento e queimadas, mas sem a abordagem das narrativas que mostrem como essas populações são afetadas.

Ela também faz documentação de mulheres indígenas, cobrindo a marcha das mulheres indígenas e o Acampamento Terra Livre realizadas em Brasília, mas, que, este ano, tiveram edição digital.

A fotografia e as barragens

Rastros da tragédia de Mariana / Foto: Isis Medeiros

No campo da fotografia, já há trabalhos consistentes na documentação dos atingidos por barragens e nos efeitos do impacto ambiental e sobre as populações.

Alguns nomes se destacam, como Lalo de Almeida, pela Folha de São Paulo; Cícero Pedrosa Neto, pela Amazônia Real; do canadense Aaron Vincent Elkaim, bolsista da Alexia Foundation; outro canadense o cineasta Todd Southgate, com seus documentários; o fotojornalista Lilo Clareto em parceria com Eliane Brum para o El País; o da amazonense Juliana Pesqueira, em Teles Pires pela Proteja Amazônia; o da mineira-paraense Paula Sampaio com seu trabalho autoral sobre o impacto das repressas das usinas hidrelétricas; o da mineira Marilene Ribeiro, recentemente contemplada com o Prêmio Descubrimientos do PhotoEspaña 2020, com seu ensaio Água Morta, sobre Belo Monte. Além dos importantes trabalhos de Edgar Kanaykõ do povo Xakriabá, em Minas, e do coletivo Mídia Índia

Há uma nova geração de fotógrafas mineiras que abordam o tema da mineração e dos crimes ambientais, com destaque para o trabalho Veias Coloniais, de Julia Pontés. Ísis Medeiros se insere nessa galeria de novos olhares fotográficos.

Agora, assista à live com Isis, Krenak, Nair e Simone, realizada em 30/11 para celebrar o lançamento do livro:

Fotos: com exceção do retrato de Aiton Krenak (Ruy Teixeira), todas são de autoria de Isis Medeiros (como o retrato do destaque, que mostra uma moradora atingida pelo rompimento da barragem do Fundão) e estão em seu primeiro livro

*Alberto César Araújo é editor de fotografia da agência Amazônia Real, site no qual este seu texto foi publicado originalmente em 29/11/2020. Para publicação, aqui, no Conexão Planeta, o texto passou por nova edição, realizada por Mônica Nunes.

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