A desconstrução do Brasil: como o governo atua na corrosão da democracia e elimina a participação da sociedade civil

A desconstrução do Brasil: como o governo atua na corrosão da democracia e elimina a participação da sociedade civil

Num malfadado jantar de extremistas nos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro teceu uma frase que ficou famosa no mundo político. Ele disse que, antes de construir qualquer coisa no Brasil, “sua tarefa seria a da desconstrução”. Isso seria uma forma de livrar o Brasil do “comunismo”, de acordo com a vertente terraplanista. O fatídico jantar, ocorreu no dia 17 de março de 2019, e foi amplamente divulgado pela imprensa.

Três semanas depois, em 11 de abril de 2019, o governo Bolsonaro publicou um decreto que extinguiria, a partir do dia 28 de junho, todos os colegiados ligados à administração federal. O decreto determinava o fim de conselhos, comissões, comitês, juntas e outras entidades do gênero. Muitos deles eram formados por integrantes de órgãos do governo em conjunto com membros e representantes da sociedade civil. O tema tomou ampla discussão pública e foi parar nos tribunais.

O decreto de Bolsonaro foi apreciado em 13 de junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou parte da medida. Todos os ministros da Corte entenderam que o presidente da República pode fechar somente os conselhos e comitês criados por decreto ou por outra norma infralegal. No entanto, os criados por lei não podem ser extintos, como o Conselho Nacional de Educação, o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social. Também não podem ser extintos colegiados previstos no estatuto de instituições federais de ensino.

Hoje, apesar de parcialmente infrutífera, a iniciativa da “desconstrução” mencionada por Bolsonaro se manifestaria através de diversos atos antidemocráticos totalmente contrários ao interesse público. Mais adiante, essa desconstrução democrática na área ambiental, também ficaria conhecida como o famoso “ir passando a boiada,” do infelizmente, ainda ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

O estrago foi grande…

Conforme revelado pelo jornal O Globo, o Planalto publicou um decreto no dia 28 de junho de 2019 que manteve o funcionamento de apenas 32 comitês consultivos, o que representava 1,2% dos 2.593 colegiados até então existentes. Foram preservados também os 996 colegiados ligados a instituições federais de ensino. Em julho do ano passado, o número de conselhos recriados chegou a 74. Não houve, até hoje, informações sobre a recriação de outros.

Pelo levantamento do jornal, existiam ainda 734 órgãos criados por atos internos, como portarias, e que devem permanecer extintos. Entre eles, há os que abordam temas como diversidade, políticas públicas para refugiados, ações contra corrupção, criminalidade, questões de saúde e escolaridade indígena.

Redução drástica

O que ocorreu, portanto, foi que o STF apenas freou parte dos ímpetos de Bolsonaro. Isso porque, mesmo com a recriação de parte dos conselhos por determinação do STF, a configuração desses colegiados sofreu mudanças drásticas, com uma redução intensa da participação dos membros da sociedade civil. Desse modo, nossa já cambaleante democracia, foi tremendamente prejudicada.

De acordo com levantamento publicado pelo portal UOL, dos 74 conselhos recriados até julho de 2019, o mais afetado foi o do Meio Ambiente (Conama). Antes, cada estado da federação e cada ministério tinha direito a uma representação. Com isso, o total de membros podia passar de 90. Com a mudança, ficaram apenas 23 nomes definidos por decreto, sendo que o poder federal ocupa praticamente a metade.

A sociedade civil, que tinha direito a até 29 representantes no Conama, hoje tem apenas seis, sendo quatro de entidades ambientalistas e dois do setor empresarial. A composição atual ainda exclui o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e a ANA (Agência Nacional de Águas).

Outros cenários

O Conselho Nacional de Política Cultural também foi afetado pelo governo, com o corte de 17 cadeiras antes destinadas à sociedade civil. O número passou de 36 para 18 membros. O Conselho Nacional de Combate à Discriminação extinguiu representantes da população LGBT, um dos grupos que mais sofrem com a intolerância e com a violência no Brasil.

A linha política desfavorável à participação popular e das minorias sociais prosseguiu neste ano. Em fevereiro, o presidente Bolsonaro excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Em julho deste ano, em meio à pandemia causada pelo coronavírus, ele retirou a vaga dos indígenas do Conselho Nacional de Educação.

Esse cenário motivou a Organização das Nações Unidas (ONU) a preparar um documento alertando o país a respeito da decisão do governo de Jair Bolsonaro de restringir o trabalho de conselhos, limitando a participação da sociedade no delineamento das políticas públicas. A informação foi publicada primeiramente pelo jornalista Jamil Chade, em sua coluna no UOL em junho deste ano.

Bolsonaro e o “cocô petrificado”

A política do atual governo federal com o patrimônio histórico, arqueológico e natural do Brasil é, no mínimo, pífia. Um exemplo é a declaração do presidente Jair Bolsonaro durante a famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

O presidente disse que um bem arqueológico dos índios brasileiros que tinha sido encontrado em uma obra da loja Havan, de propriedade do Luciano Hang, no Rio Grande do Sul, era um “cocô petrificado”. Hang havia se queixado com o chefe do Executivo Nacional porque as obras tinham sido embargadas.

“O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que tem que fazer? Alguém do Iphan que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder”, declarou o presidente.

Ao jornal ‘Folha de S.Paulo’, a ex-presidente do Iphan, Kátia Bogéa, disse ter sido demitida por Bolsonaro após reclamações de Hang e do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Essa política intervencionista toma conta do cenário nacional como um todo.

Em 11 de maio, o governo nomeou para a presidência do órgão Larissa Peixoto, uma amiga da família Bolsonaro, turismóloga e servidora do Ministério do Turismo há 11 anos. Em junho, uma decisão liminar suspendeu a nomeação de Larissa para o cargo.

Em sua decisão, o juiz Adriano de Oliveira França, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, afirmou que a nomeação de Larissa para a presidência do Iphan fere o artigo 2º do Decreto nº 9.727. Em seu inciso II, a lei diz que são critérios gerais para a ocupação do cargo um “perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo ou a função para o qual tenha sido indicado”.

Em abril, a blogueira de viagens Monique Aguiar foi nomeada por Marcelo Álvaro Antônio, Ministro do Turismo, como superintendente do Iphan do Rio de Janeiro. Ela não tem a qualificação curricular exigida por lei para ocupar cargo de direção de nível 3, o chamado DAS 3. Monique não tem curso superior em nenhuma área. Em junho a Controladoria Geral da União (CGU) confirmou que ela não possui qualificação para o cargo. No mesmo mês, sua nomeação foi suspensa. Em agosto Monique recebeu o cargo de Coordenadora de Projetos Especiais da Fundação Nacional de Artes (Funarte).

*Texto publicado originalmente no jornal online e gratuito do Observatório de Justiça e Conservação

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Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Conexão Planeta

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Imagem: domínio público/pixabay

Um comentário em “A desconstrução do Brasil: como o governo atua na corrosão da democracia e elimina a participação da sociedade civil

  • 11 de janeiro de 2021 em 11:16 PM
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    Só para inicio de conversa não existe democracia quando para se eleger precisa-se fazer mediante um partido político, só por este fato já deixa de existir democracia.
    Outro fato que já elimina a existência dela é a falta de voto distrital.
    Outra indicação que não existe democracia é a falta de um sistema de “recall” de mandato pelo povo.

    O Brasil nunca foi uma democracia, ela é uma República Representativa, Democracia jamais foi.

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Observatório de Justiça & Conservação

O Observatório de Justiça e Conservação (OJC) é uma iniciativa apartidária e colaborativa que trabalha fiscalizando ações e inações do poder público no que se refere à prática da corrupção e de incoerências legais em assuntos relativos à conservação da biodiversidade, prioritariamente no Sul do Brasil, dentre os quais se destacam, a Floresta com Araucária