A circulação de brincadeiras nos espaços das cidades

Você já pensou que algumas brincadeiras precisam de espaços específicos para acontecer? Esse pensamento ficou na minha cabeça depois do último Já pra Rua, evento para as crianças brincarem na rua que ocorre no bairro Butantã, em São Paulo.

Este é um encontro bastante simples e feito por pessoas do bairro onde moro. Juntamos um grupo de mães e pais, controlamos o fluxo do trânsito por meio de cones e faixas amigáveis e convidamos os vizinhos para um café da manhã colaborativo. A gente nunca sabe direito o que vai acontecer em cada evento. Mas me parece que as crianças sabem exatamente o que fazer: separaram logo um espaço para o futebol; desenham amarelinhas no chão; batemos cordas; crianças pularam elástico. Todas aquelas brincadeiras que de uma maneira ou de outra circulam entre pares e através de gerações.

Refletindo sobre como tudo aconteceu, fico com a impressão de que as brincadeiras precisam de um “palco” para acontecer, de um espaço que permita que elas sejam praticadas. Porque brincadeiras, todos sabemos como são, não são possíveis de aprender na teoria. O pátio da escola, o quintal de casa, a praça do bairro, todos esses espaços que possibilitam o encontro entre crianças são os cenários onde essas brincadeiras são evocadas e postas em circulação.

E a rua como espaço para o brincar? Que “palco” é esse? Quais são as brincadeiras próprias desse lugar?


Nesse último Já pra Rua, teve uma brincadeira que me chamou mais a atenção nesse sentido: o carrinho de rolimã. Tinha criança que nunca tinha subido num carrinho de rolimã e foi tomada pela adrenalina que é descer e sentir a velocidade crescer em seu corpo, a emoção do movimento fluído proporcionado pelas rodas no asfalto.

O asfalto. Ele é o melhor “palco” para uma descida no carrinho de rolimã. Provoca uma combinação entre fluidez e fricção, de modo que o movimento possa ser ao mesmo tempo fluído e controlável. Me parece que esta é uma experiência que precisa da rua para acontecer.  Se não tivermos esse espaço disponível para as crianças brincarem com os seus carrinhos de rolimã é possível que essa brincadeira não aconteça, é possível que uma criança cresça sem nunca ter experimentado essa sensação. É provável que essa brincadeira se torne algo que é parte de um repertório do passado, que seus pais ou avós brincavam quando as ruas das cidades eram mais calmas e seguras, coisas de outros tempos, quando as crianças podiam circular pela rua com liberdade, trocando entre pares muitos saberes que são próprios da infância.

Richard Louv, em seu livro A Última Criança na Natureza (2016)[1] (sobre o qual a educadora Isabel Amando de Barros falou aqui, no Conexão Planeta), relata sentimento parecido em relação aos acampamentos de verão em San Diego (USA), onde o distrito escolar tem promovido aos alunos do sexto ano, por décadas, esse tipo de experiência nas montanhas próximas.

O autor chama atenção para a brevidade da infância e para a importância dessa experiência significativa na natureza ser vivida nessa fase. Ele considera que o valor principal desses programas de educação ao ar livre, que existem nos Estados Unidos, recai justamente “nos elementos que sempre uniram a humanidade: tempestades, vento forte, sol quente, florestas densas e escuras – e a reverência e o encantamento que a Terra inspira, especialmente durante nossos anos de desenvolvimento”.

De fato, dormir em barracas ao relento, fazer fogo, contemplar a escuridão da noite, encantar-se com o brilho de vaga-lumes, contar histórias de assombração, balançar-se em cipó de árvores são experiências que também precisam desse espaço específico para ocorrer e os acampamentos são, nesse caso, um cenário bastante propício para que elas ocorram.

Em seu livro, Louv sugere que existam reservas naturais da infância, que seja assegurada às crianças a possibilidade de usufruir da experiência na natureza e que, ao mesmo tempo, esses espaços possam se associar como lugares de aprendizado para programas de educação.

Outro estudo muito interessante que relaciona os espaços para a criança e o brincar foi desenvolvido pelo Instituto de Ciência Social Aplicada (FIFAs), na Alemanha. Esse estudo foi encomendado pela prefeitura de Freiburg, que procurava compreender os motivos pelos quais as crianças estavam cada vez mais distantes da rua e cuja rotina estava organizada principalmente em espaços internos, permeada por atividades dirigidas, e o tempo de lazer preenchido por eletrônicos.

A pesquisa procurou, então, identificar os espaços de ação da criança pela cidade, as distâncias percorridas de casa até um local para brincar e a qualidade desses ambientes. Saíram em busca das “pegadas do brincar” que as crianças um dia deixaram pela cidade.

A pesquisa levantou dados quantitativos sobre o perfil dos moradores e os entornos de diferentes bairros da cidade (parques, praças, trânsito de carros nas ruas), e ainda identificou dados qualitativos relacionados à percepção que pais e crianças tinham a respeito dos espaços de brincar, produzindo dados advindos da observação diária sobre o uso do tempo feito pelos filhos (quanto tempo eles brincam, ficam na escola, participam de atividades, usam equipamentos públicos etc.).

Entre os resultados, ficou a percepção de que o modo como se vive a infância tem um efeito espacial sobre a cidade. Durante a pesquisa, procurou-se estabelecer um olhar não apenas para os lugares especificamente construídos para as crianças, mas para toda a geografia do brincar percorrida por elas, tendo em vista a preservação desses espaços como lugares importantes para acolher a infância na cidade.

Portanto, no projeto de Freiburg, seria fundamental considerar como espaços de brincar os pontos de ônibus, os terrenos baldios e os diferentes trajetos percorridos pelas ruas, tornando o espaço da cidade mais atrativo para as crianças.

Leia mais sobre as experiências em Freiburg: 
20 dias contemplando as crianças na natureza
Como faz para trazer as crianças de volta às ruas da cidade 

Como já aponta o feliz nome do programa Território do Brincar, o brincar da criança precisa de um território. As brincadeiras circulam em determinados lugares. Talvez as experiências relatadas apontem caminhos para acolher melhor a infância em nossas cidades: considerar sua circulação pelo espaço, onde elas brincam e sua mobilidade.

Pensar nos espaços livres das cidades, como praças e parques, mas também pensar em seus trajetos nas ruas, terrenos, rotatórias. Tornar seus percursos mais atraentes, seguros e acolhedores, mais verdes e sombreados, criando na geografia da cidade um cenário que estimule as crianças a estarem na rua para que essa relação da infância na cidade não fique apenas como uma lembrança de outros tempos.

Afinal, repensar os espaços públicos da cidade é algo que transcende a infância, que está relacionado ao viver na cidade, como nos alerta Jane Jabos, urbanista canadense: “A rua não é um mero vazio para os carros passarem. A rua é uma complexa instituição na qual, desde crianças, aprendemos a socializar e construir comunidade. Se a rua acaba por privilegiar o automóvel sobre o pedestre, ela morre e inicia-se o fim da cidade”.[2]

[1] Louv, Richard.2016. A Última Criança na Natureza. Aquariana: São Paulo

[2] Jabobs, Jane. 2000. Morte e Vida e Grandes Cidades. Martins Fontes: São Paulo.

Fotos: Paula Mendonça

Um comentário em “A circulação de brincadeiras nos espaços das cidades

  • 14 de abril de 2018 em 7:51 PM
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    Excelente texto Paula. Temos buscado levar a escola para as ruas também, feito eventos diversos nas ruas, mas não é fácil. Recentemente, com a autorização da CET, fizemos um evento aberto na rua em frente a escola. Tudo certinho, com autorização e tudo mais. Ainda assim, houve reclamação no facebook, porque a escola “privatizou a rua” (notar que o evento era aberto, sem custo e para toda a vizinhança). No começo do ano, uma semana antes do Carnaval, convidamos as famílias e levamos um bloquinho com as crianças para a Paulista aberta de domingo, e novamente, aproveitamos o momento para deixar as crianças usarem a avenida, as calçadas, etc. Não faltou reclamação sobre “o uso sem autorização”. Nos eventos, mesmo nos parques, se uma das crianças resolve subir numa árvore, não falta quem diga que é proibido. Realmente uma luta devolver a cidade aos pequenos. Se depender de nos, faremos com alegria.

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Paula Mendonça

Mestre em educação pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre infância indígena. Atuou cerca de 10 anos no Parque do Xingu por meio do Instituto Socioambiental. É co-diretora do curta metragem Waapa, realizado em parceria com o Projeto Território do Brincar. É assessora pedagógica do Programa Criança e Natureza do Alana. Mãe da Nina e Luana.