33 papagaios-de-peito-roxo, vítimas de tráfico ou nascidos em criadouro, são reabilitados e soltos no Parque das Araucárias

Depois do susto e da preocupação causados pelo roubo de câmeras/armadilhas fotográficas, correntes e cadeados usados para a segurança do viveiro de reabilitação do Instituto Espaço Silvestre, instalado no Parque Nacional das Araucárias, a equipe de pesquisadores pode, finalmente, respirar aliviada e dar continuidade à sétima soltura de papagaios-de-peito-roxo. 

Os papagaios foram levados para o viveiro na quarta, 13 de março, e o roubo aconteceu de madrugada. A soltura estava programada para começar a acontecer no dia 16, mas como contamos, aqui no site, esse ato de vandalismo deixou todos apreensivos, e ela foi temporariamente suspensa. 

Rapidamente, Vanessa Kaanan, diretora técnica do instituto e membro da Comissão de Especialistas em Conservação de Translocação da IUCN, acionou a Rede de Proteção dos Papagaios-de-Peito-Roxo,formada por instituições locais, regionais e nacionais como o ICMBio (instituição que faz a gestão do parque já que é uma unidade de conservação federal), o Ibama e as polícias ambiental, militar e civil.

“No dia seguinte, a polícia militar, a polícia militar ambiental e o pessoal do ICMBio já estavam no viveiro e várias ações foram realizadas. E esse apoio dos parceiros, mais tudo que envolve a logística em cada soltura, foram decisivos para retomarmos os trabalhos um dia depois da programação, no domingo, 17”, contou Vanessa. 

“Os papagaios são vítimas do tráfico, passaram por um processo longo de reabilitação, não seria justo que uma atitude tão covarde como essa acabasse com sua chance de viver livremente, de poder dispersar sementes, de poder procriar e talvez até ser predado, mas integrar a natureza, fazer parte dela como deve ser”, declarou. 

Sem dúvida, passar o resto de suas vidas em cativeiro – levando em conta que, nem sempre, é possível encontrar parceiros bacanas para recebê-los e mantê-los -, seria muito cruel. E colocaria em risco todo o projeto realizado pelo Instituto Espaço Silvestre, que, desde 2010, repovoa a região com essa espeécie

Além de ser muito custoso e exigir parcerias e doações, o projeto conseguiu tirar a espécie da classificação de extinta na região.Até o ano passado, foram soltos 153 papagaios-de-peito-roxo. 

Muita observação e paciência

Assim, desde domingo, 17/3, a equipe de biólogas e voluntários do Instituto abrem a porta do viveiro todos os dias pela manhã, cedinho, observam cada movimento e só a fecham no final da tarde. Tudo é feito no tempo dos papagaios, por isso, esta técnica é conhecida como soltura branda.

Vanessa conta que “eles só vão para o viveiro de reabilitação quando atendem os requisitos de genética, saúde e comportamento. E ficam ali, sendo observados por nós até que reúnam todas as condições são favoráveis para a soltura. E quais são elas? Eles precisam se comportar de maneira natural, ou seja, fazer a manutenção das penas, beber água, comer, não se desesperar por estar dentro do viveiro, se habituar ao novo local”. Aí, sim, a porta começa a ser aberta. 

Para receber os novos moradores temporários, o viveiro é “equipado” com folhas, frutas espetadas, galhos de todos os tipos, que se assemelham aos poleiros naturais que encontrarão na floresta: duros, espinhosos como os das Araucárias, que balançam ou muito flexíveis como o bambu,. Também são colocadas plataformas com alimentos. Ou seja, o ambiente é preparado minuciosamente para que eles se sintam bem no novo espaço e se acostumem com os sons, a presença de outros animais, o clima, as intempéries, o dia e a noite, e se sintam tranquilos para voar para fora do viveiro.

Mas os pesquisadores estão ali não só para observar e aprender um pouco mais sobre seu comportamento, mas também para lhes dar suporte.

Eles levam dias para perceber que o viveiro está aberto. Alguns percebem e voam para um poleiro próximo. Podem voltar. Alguns saem e voltam inúmeras vezes, até se sentirem seguros para não voltar mais. Os pesquisadores ficam atentos a cada movimento.

“Se algum cai de um galho, por exemplo, observamos para ter certeza de que conseguirá sair rapidamente do chão – onde fica mais vulnerável a predadores– e voar. Ou, quando o local é mais fechado, se conseguirá escalar a árvore mais próxima, até chegar a um galho seguro”, conta Vanessa. Caso não consigam, os pesquisadores interferem sutilmente.

No final deste post, publiquei três vídeos que mostram flagrantes de papagaios saindo do viveiro e um deles, já empoleirado na natureza, se comunicando, animado.

A soltura pode demorar até 15 dias, conforme a configuração do grupo. “O que os faz sair é a vontade de explorar. Nós obviamente também fizemos manejo ao redor do viveiro, colocamos poleiros um pouco mais baixos e próximos para que eles tenham segurança. Dificilmente sairão voando sem saber para onde ir. Colocamos plataformas de alimentação na região pra que os que decidam sair tenham suporte alimentar enquanto aprendem a se virar sozinhos, para que aprendam que árvores existem em volta, reduzimos a oferta de alimento dentro do viveiro…”. 

Aqui, mais uma curiosidade. Como a maior parte desses papagaios foi tirado dos pais muito cedo e só conviveu com humanos – “alguns nunca tinham visto outros papagaios até chegarem ao Instituto, nem sabiam que eram papagaios!” -, antes de ir para o viveiro, recebem treinamento no instituto para aprenderem tudo que será necessário para a sua sobrevivência, como, por exemplo, se manter firmes nos poleiros, qualquer que seja o tipo de galho, como se defender de predadores…

Neste caso, claro que o treinamento é seguro e o papagaio não corre o risco de morrer. A lição final ele aprenderá somente na floresta.

E ainda há um detalhe importantíssimo para o sucesso da soltura e da (re)integração dos papagaios na mata. A presença de papagaios de solturas anteriores, que já estão absolutamente integrados e podem ajudar os novatos. Esta é uma estratégia adotada há dois anos (as solturas são feitas anualmente) e tem dado muito certo.

Nesta soltura, há cinco papagaios (um de 2017 e os demais de 2018) como estes rondando o viveiro. Eles foram rapidamente identificados pelos pesquisadores. Mas como? No processo de reabilitação, no cativeiro, todos os animais são chipados e recebem anilhas (com numeração, como um RG). Alguns também usam rádio-colares para serem monitorados durante um bom tempo.

Mas por que os bichos soltos ainda rondam a região do viveiro? Porque conhecem a região e também dos alimentos que são deixados na parte externa, de vez em quando. São atraídos por eles. “Quando os novos papagaios chegaram, os das outras solturas estavam lá. Estes observaram, emitiram sons para se comunicar, subiram na tela para chegar mais perto e interagir. Esse encontro é muito importante no processo de ambientação também”, salienta Vanessa. 

“Percebemos, ao longo dos anos, que quanto mais gradual for o processo, maiores as chances de sucesso, tanto em termos de sobrevivência, como do estabelecimento de uma população, ou de um grupo no local”, completa.

Por isso tudo, não há pressa. Ao ouvir o relato de Vanessa, imaginei que este trabalho é quase como uma meditação. Exige que o pesquisador esteja inteiro “aqui e agora”, sem se distrair. Absolutamente focado. Me emocionei muito com tudo que ela contou. Me fez sentir um afeto enorme por toda a equipe, pelo trabalho que realizam e também por estes bichos lindos.

“É emocionante demais ver papagaios que passaram décadas em uma gaiola, sem ver nem conviver com outros papagaios, se recuperarem e voarem por cima da copa das árvores, na floresta, livres”, conta a bióloga. 

Resiliência também nas parcerias amorosas

Como qualquer outro papagaio, os de peito-roxo podem escolher um parceiro pra vida inteira. Mas, como explica Vanessa, “há uma flexibilidade social nesse pareamento talvez porque estes papagaios são vitimas do tráfico e já passaram por vários ambientes sociais. Foram separados dos pais quando eram filhotes, depois de um tempo de convivência, foram separados dos humanos que os mantinham em cativeiro, depois passaram um tempo com a gente no instituto, para a processo de preparo da reintegracao, então possuem uma flexibilidade maior e parece que se adaptam bem às mudanças”. 

Por isso, nem todos que vivem livres estão pareados. Eles têm idades diferentes, histórias diferentes. E, depois da soltura, casais podem mudar. Por uma série de fatores. Pode acontecer de um casal formado no cativeiro, depois de solto trocar de parceiro.

“Já aconteceu de termos papagaios que estavam pareados por três anos no cativeiro e, quando foram soltos, um deles sumiu. Certamente foi predado. E o papagaio que ficou encontrou um outro par e teve dois filhotes”. 

Monitoramento depois da soltura

Assim que o último papagaio-de-peito-roxo sai do viveiro, este é fechado até a próxima soltura. Mas o monitoramento desses animais continua. Afinal, integrados à natureza, terão uma vida normal, encontrarão seus pares e terão filhotes – nascidos livres! –, que precisarão de acompanhamento também.

Esse é o processo normal de todo projeto de reintrodução de uma espécie em área onde ela era considerada extinta ou quase extinta. E este trabalho é realizado pelo Instituto Espaço Silvestre e também por pessoas da comunidade. Vanessa explica:

“A nossa equipe utiliza uma série de metodologias, que vão desde a observação direta, escuta de vocalização, radiotelemetria (quando temos recursos pra ter rádios-colares nos papagaios, com os quais são monitorados a certa distância), armadilhas fotográficas que permitem que acompanhemos os predadores, as plataformas de alimentação e as caixas-ninho (usadas para reprodução). O uso de drone era uma ideia que poderia suprir os lugares em que não temos acesso, nem a pé nem de carro, mas ainda não se mostrou tão eficiente para acompanha-los”.

O trabalho é grande, por isso seria muito difícil monitorar todas as áreas de todas as comunidades ao mesmo tempo. “Assim, identificamos que o auxílio das pessoas que vivem na região seria muito importante para o monitoramento. Por isso, começamos a trabalhar com o programa de Ciência Cidadã, ou seja, com os relatos da comunidades”. E como funciona?

As pessoas são instruídas e convidadas – através de visitas às propriedades, materiais impressos e mensagens pela rádio – a observar e avisar quando identificarem um papagaio-de-peito-roxo em sua região. Elas comunicam pelo WhatsApp ou pelo telefone. Algumas confundem maritaca verde com o papagaio e recebem instruções mais detalhadas para a próxima observação.

“O mais legal é que todas as pessoas que participam dessas observações – ou seja, os cidadãos cientistas – recebem certificado, o que gera uma sensação de orgulho. É muito legal porque muitas pessoas que moram na área rural acabam sendo consideradas como uma espécie de cientistas porque ajudam nesse monitoramento. Isso ajuda a ampliar a área de monitoramento e elas se sentem participantes do projeto”.

E, para reduzir as ameaças que levaram à extinção do papagaio-de-peito-roxo na região, o instituto ainda mantém projetos de educação ambiental e de geração de trabalho e renda para mulheres que vivem no entorno do parque.

“O projeto de educação ambiental começou de um jeito tímido. A nossa equipe, mesmo, que ia a campo uma vez por mês, visitava escolas, fazia palestras e atividades com as crianças, ia nas empresas – lá tem madeireiras e celulose, e pessoal que trabalha em campo e pode ver os papagaios. Falávamos com as pessoas nas propriedades rurais. Hoje temos uma pessoa dedicada para fazer esse trabalho”. E Vanessa continua:

“Procuramos saber dos professores o que precisavam para trabalhar temas ambientais com as crianças, criamos um guia de atividades educativas, fizemos treinamento para utilização desse material. O resultado tem sido muito bacana. Eles seguiram as atividades do guia e eles criaram outra. Uma aluna de mestrado da USP que fez um curta metragem, e também uma radio novela, que as próprias crianças da comunidade criaram e contaram histórias sobre os papagaios”.

Somam-se a essa infinidade de projetos outras ações, não só de educação ambiental, mas de divulgação por meio de artigos científicos e reportagens em publicações nacionais e estrangeiras. A presença digital com o site e as redes sociais também tem sido muito especial para ampliar informações.

“Com esse projeto de educação ambiental e de divulgação já alcançamos cerca de dois milhões de pessoas no mundo. Nem todas foram treinadas, mas receberam informações sobre os papagaios-de-peito-roxo. Ou seja, conhecem o projeto e a importância desses animais”.

Veja quanta mobilização e quanto conhecimento disseminado em torno de uma única espécie!

Três flagrantes preciosos

Agora, assista aos vídeos curtinhos produzidos pela equipe do instituto e publicados em seu canal no You Tube. Dois são flagrantes rápidos da saída de papagaios do viveiro. O terceiro mostra um papagaio empoleirado na natureza, “arrepiando a gola”, quer dizer, levantando as penas do pescoço, como se fossem uma gola. Vanessa explica que, geralmente, o papagaio faz esse movimento em duas situações:

“Quando chacoalha para tirar a poeira das penas ou quando vocaliza. Todo dia, no começo da manhã e no final da tarde, quando todos fazem a maior bagunça, gritam juntos, alguns arrepiam a gola”. É lindo. Divirta-se!

Depois de muito esperar, pesquisadora observa a saída de dois papagaios do viveiro de ambientação 
Voo em câmera lenta de um papagaio-de-peito-roxo ao ser do viveiro de ambientação
Quando arrepia as penas do pescoço, parece que o papagaio ganha uma gola

Fotos: Vanessa Kanaan (destaque e terceira imagem) e Gabriel Brutti

Deixe uma resposta

Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.