Avistar uma onça-pintada no Pantanal não é tão difícil como há dez ou 15 anos. Nem presenciar esse belo felino acasalando, se banhando, na companhia de filhotes, comendo uma carcaça ou atacando uma presa. Mas, para apreciar esse animal fantástico durante uma caçada e vê-lo sair vitorioso, é preciso um bocado de sorte.
“Mesmo pra quem está acostumado a ver onça todo dia no Pantanal, presenciar uma captura de sucesso é muito difícil. A maioria das tentativas é frustrada”, conta o biólogo Fábio Paschoal, guia do Refúgio Ecológico Caiman e especialista em ecoturismo.
Mas foi exatamente isso que aconteceu diante de um grupo de turistas guiado por ele em 3 de agosto: a cena “tirou o fôlego” de todos, inclusive de Paschoal, que tem 14 anos de experiência como guia no bioma.
A presa-surpresa
Durante a expedição, o grupo parou próximo a um açude para apreciar os animais. “Como está muito seco – este ano é um dos mais secos na história da Caiman -, se você fica parado próximo à água, vê muitos bichos indo beber ou se refrescar”, destaca.
“Nesse momento, vimos macacos, uma cotia, um tucano e outras aves bebendo água. Depois de uns 40 minutos, propus que seguíssemos. Quando entramos na estrada, avistamos uma onça-pintada, a Oriba, filhote da Isa, que vinha logo a seguir. Elas cruzaram a mata em direção ao açude, e propus voltarmos pra lá”.
Felinos gostam muito de água, e observá-las nesse momento pode render lindas cenas para desfrutar e registrar.
Paschoal acompanhava a caminhada da mãe e da filha, muito atento e com sua câmera em punho, quando os turistas viram outra onça e o avisaram.
“Quando olhei, vi a Aracy, que também é filha da Isa. Logo Isa viu a Aracy, correu até ela e rosnou. Aracy se deitou em posição de submissão – como quem não quer nada -, e Isa voltou para perto do filhote”.
Para entender a visão privilegiada do grupo, vale salientar que, devido à seca intensa deste ano, o açude se dividiu em dois açudes menores, o que resultou em uma faixa de terra entre eles, onde o carro ficou parado. De um lado, estavam Isa e Oriba se banhando. Para o outro, se dirigiu Aracy.
“Ela se levantou e foi para a água. Não estava em posição de ataque, apenas se banhava quando, de repente, mergulhou. Sabia que algo inesperado acontecia. Em seguida, Aracy voltou à superfície com um jacaré na boca, mordendo fortemente seu pescoço”.
Durante o banho, a onça pode ter pisado no jacaré e não perdeu a oportunidade.
No vídeo gravado por um dos turistas, o americano Kurt Zelnak (a Caiman divulgou a gravação no Instagram; assista no final deste post), é possível ouvir algumas das declarações de maravilhamento de todos com o espetáculo.
Paschoal, que é um super fotógrafo, registrou a captura. É dele a imagem que ilustra este post.
“Geralmente, os felinos atacam a presa no pescoço, fecham a traqueia e matam por sufocamento. As onças têm a mordida mais forte e, por isso, caçam de um jeito diferente”, explica Paschoal. “Ou vão no pescoço, quebrando a espinha, ou na cabeça, quebrando o crânio. Aracy pegou o jacaré pelo pescoço. Ele não deve ter se debatido muito. A morte foi instantânea”.
Em seguida, a onça saiu da água, suja de lama (do fundo do açude, certamente), e arrastou o jacaré para um lugar seguro onde pudesse comê-lo sossegada.
Paschoal contou que o jacaré era adulto e devia ter entre 1,20 a 1,50 metros – “os jacarés do Pantanal nascem com 20 centímetros e podem chegar a três metros”. E Aracy não é uma onça grande. “Os machos podem chegar a pesar 150 quilos e ser até três vezes maiores que as fêmeas que pesam entre 50 a 90 quilos. Aracy deve ter entre 55 e 60, não mais que isso”.
Magia e alto astral
Para o guia, tudo foi muito mágico nesse dia. “As onças são mais ativas no crepúsculo. A luz estava maravilhosa e ficamos numa posição muito favorável. Aracy estava próxima do carro, a menos de 4 metros. Tudo deu muito certo! Uma série de fatores contribuíram para o belo avistamento”.
E Paschoal ainda destacou o interesse dos turistas e a “vibe do grupo”, que contribuíram para tornar a expedição ainda mais especial. E conta:
“Na primeira noite deles na pousada, vimos a onça-pintada Bacuri (macho) capturar uma queixada. Ele chegou a abraçá-la, mas ela escapou! Numa expedição com o projeto Onçafari, conheceram Aracy espreitando uma anta, mas ela logo percebeu que o bicho era muito grande e desistiu. Depois viram a Aracy tentando pegar uma capivara, sem êxito. Foram duas ou três tentativas de caça, até que, no dia seguinte, a Aracy pegou o jacaré!”.
E acrescentou: “Aqui, a gente sempre vê algo novo, sempre se surpreende. A gente sai para a expedição sem saber como será o dia, mas sabe que será fantástico”.
Ainda mais se envolver Aracy, sua onça favorita. “Ela proporciona os avistamentos mais legais da pousada”, garante o guia.
O primeiro avistamento de caça
Fábio Paschoal formou-se em Biologia, mas não queria trabalhar no mundo acadêmico – dar aulas ou fazer pesquisa. Descobriu sua vocação em Vancouver, no Canadá, quando cursava Biologia Marinha para aprimorar o domínio da língua inglesa e voluntariou-se no aquário local como monitor.
“Percebi que sentia prazer contando sobre os animais para as pessoas. Ao voltar para o Brasil, fiz um curso de ecoturismo e logo fui indicado por um amigo para trabalhar na Caiman”.
Isso foi em 2008, e lá ficou por dois anos. Em seguida, teve a oportunidade de viver em Alta Floresta, na Amazônia, trabalhando como guia no hotel Cristalino Lodge, durante um ano.
De volta a São Paulo, tornou-se repórter da revista National Geographic Brasil (então, da Editora Abril) e, nas férias, voltada à Caiman, tamanho o prazer que sentia como guia turístico.
No site da revista, assinava o blog Curiosidade Animal, ao qual tem dado continuidade de forma independente desde que saiu da editora. Também assinou blog homônimo, aqui, no Conexão Planeta, de 2016 a 2017.
Entre idas e vindas do Pantanal, Paschoal estava cada vez mais apaixonado pela profissão escolhida, mas veio a pandemia. Em 2021, voltou à Caiman para ficar um mês, que se transformou em sete. Este ano também: está há sete meses na pousada e a estada pode ser ampliada devido ao movimento de turistas.
Ele lembra que, quando se iniciou nesse trabalho – antes da criação do Onçafari –, era dificílimo avistar onça porque elas fugiam ao ouvir qualquer barulho. Mas, a partir de 2011, com a ‘habituação das onças aos carros de passeio”, o avistamento tornou-se possível. “O carro virou elemento neutro. Elas sabem que a gente está ali e continuam sua rotina normal”.
No início das atividades na Caiman, a chance de ver o felino era de cerca de 7%. Hoje, é de 99%, a maioria das onças é vista em atividades corriqueiras como acasalando, na companhia de filhotes, comendo a carcaça de um animal, até caçando, nem sempre com êxito.
Paschoal teve sorte: “Vi a primeira onça caçando quatro meses depois de chegar aqui”. E sabe quem foi? Fera, irmã de Isa, tia de Aracy. “Ela capturou um tatu muito rápido. Estava caminhando tranquila quando o viu: espreitou, deu dois pulos e pegou! Mas a grama estava alta e foi difícil registrar”.
(Fera e Isa ficaram órfãs em 2014, quando tinham apenas três meses. Foram resgatadas pelo Onçafari e, com o treinamento de sua equipe, aprenderam a ser selvagens, como contamos aqui. São as primeiras onças no mundo reintroduzidas na natureza e já são avós!)
O guia ainda destaca outro aspecto interessante de seu trabalho. “Com o tempo, aprendemos a identificar as onças, a estudar seu comportamento e as batizamos. Hoje, conhecemos cada uma pelo nome, sabemos detalhes de sua personalidade, o local no qual mais gosta de ficar…”.
Batismo de onça
Sempre que um guia identifica uma nova onça nas expedições da Caiman – ou seja, que ainda não foi registrada pelo Onçafari -, conquista o direito de batizá-la. Em 14 de agosto, Paschoal foi contemplado, duplamente. Ele explica:
“Fotografei uma onça e enviei para o Onçafari verificar se constava dos arquivos. E ainda estava nesse processo quando os guias começaram a fazer piada. Como sou o guia mais antigo, aqui, dizem que sou ‘o velho que anda atrás de onça’ e começaram a chamar a ‘minha onça’ de Paschoal”, se diverte.
O animal descoberto por ele ainda não havia sido registrado, então, ele poderia dar-lhe um nome. Mas a brincadeira pegou e, no fim, a onça foi batizada em sua homenagem pelos amigos. Muito lindo!
Os turistas que se hospedam no Refúgio Ecológico Caiman também podem batizar onças-pintadas. Para tanto, precisam adotá-las, comprometendo-se a pagar um valor mensal que é investido no projeto Onçafari. Com essa adesão, passam a receber notícias periódicas do animal. Mas você pode adotar outros bichos também; conheça o projeto.
Agora, assista ao vídeo gravado por Kurt Zelnak durante o avistamento de Aracy:
Foto: Fábio Paschoal
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