Vale, descomissionar barragens não vai resolver o problema. O buraco é muito mais embaixo

rio de lama provocado pelo rompimento da barragem da Vale

Neste momento caótico em que o episódio da lama se repete, desta vez com o massacre de Brumadinho, tudo que as mineradoras querem é que acreditemos que o problema está todo nas barragens. Uma vez descomissionadas (tiradas de operação e desmontadas) essas barragens de rejeitos, não há mais riscos para a população e tudo corre bem, certo?

ERRADO. O fato é que as barragens de rejeito são apenas um dos subprodutos de uma longa cadeia produtiva com efeitos desastrosos para a sociedade e para o meio ambiente. Então por que só se fala nas barragens? Simplesmente porque, quando uma delas se rompe, causa perda de vidas humanas de forma direta. No caso de Mariana, 19, e em Brumadinho, possivelmente em torno de 400 mortes. Lembrando que estes são apenas os dois casos mais famosos dentre uma série de rompimentos de barragens no estado de Minas Gerais nos últimos 15 anos.

Voltando ao assunto, todo o restante dos impactos da mineração é simplesmente ignorado, como se não existisse. Para começar, a mineração com cavas a céu aberto, o tipo mais comum de extração mineral, provoca a perda irreversível do solo, da vegetação, dos cursos d’água e de toda a biota associada. Uma vez removido o tipo específico de substrato onde a vida se desenvolve, ela simplesmente não consegue sobreviver ali.

É morte declarada aos ecossistemas onde as mineradoras se instalam, em especial os Campos Rupestres, onde há grandes reservas de minério de ferro, ouro, diamante e outros minerais de interesse econômico. Para espécies endêmicas (aquelas que só vivem ali) e/ou ameaçadas, isso pode significar sua extinção local ou mesmo global, em casos mais extremos. Lembrando que, ainda que esses locais sejam revegetados após a conclusão da exploração, eles nunca mais retornarão à sua condição original.

Isso acarreta também na contaminação (ou mesmo extinção) dos aquíferos que abastecem as grandes cidades, além da remoção das pessoas que antes viviam ali e tinham todo o seu estilo de vida associado àquele ambiente, através da agricultura familiar e da pesca, por exemplo. A chegada dos grandes empreendimentos traz não só a degradação ambiental, mas também, cultural. No caso das mineradoras, ao ocuparem uma determinada região elas destituem as pessoas do seu meio tradicional de vida, criam a dependência na população (na forma da famosa “oferta de empregos”) e ficam com praticamente todo o lucro oriundo da atividade.

Ir a uma audiência pública sobre a instalação de um desses empreendimentos chega a ser cruel, já que é muito frequente observarmos as pessoas, iludidas com o ideal do desenvolvimento, pedirem a construção de praças, campos de futebol, parquinhos de diversão ou unidades básicas de saúde em troca de abrir mão das suas montanhas, de toda sua representação cultural, da sua água e dos seus meios de vida. Em resumo, o lucro é privatizado e o prejuízo, socializado. Para quem achar que é exagero, sugiro bater um papo com moradores de regiões afetadas, como Conceição do Mato Dentro e Congonhas, ambas em Minas Gerais.

Agora que já entendemos um pouco melhor os prejuízos pouco comentados pela mídia, vamos a uma breve análise política da questão.

Quem garante a segurança, a operacionalidade e a viabilidade desses empreendimentos? Em tese, o licenciamento ambiental. É através dele que os órgãos públicos podem ter um mínimo controle das atividades e assim, conceder ou não as licenças para pesquisa, instalação e operação das mineradoras, hidrelétricas e demais empresas interessadas na exploração.

O problema é que o licenciamento está errado desde o começo já que, quem contrata as empresas de consultoria ambiental, responsáveis pela elaboração dos estudos, relatórios e laudos técnicos, são as próprias mineradoras. Só depois da aprovação dessas últimas, os documentos são finalmente entregues ao órgão ambiental. E isso, como os leitores devem saber bem, se caracteriza como conflito de interesses direto. O principal interessado apresenta os estudos que podem comprometer a ele mesmo. É como se um réu se auto-julgasse no tribunal. Isso sem contar as possíveis propinas e subornos que muito provavelmente ocorrem para que os empreendimentos sejam liberados.

O que isso significa? Significa que, na prática, os estudos ambientais elaborados por profissionais como eu (biólogo, mestre em ecologia e consultor autônomo) têm muito pouco alcance e potencial de influência sobre a concessão das licenças. Isso porque, na esmagadora maioria dos casos, independente do que consta nesses documentos, o Estado acaba por conceder as licenças ao empreendedor de qualquer forma. Além de deixar a nós, profissionais do licenciamento, extremamente frustrados, esse processo leva à liberação de empreendimentos que não deveriam o ser. O final da história vocês já conhecem.

Termino esta história provocando um questionamento sobre o quanto “Vale” nossa água, nossa cultura, nosso lazer, nossos meios de vida e nossa saúde. Quanto valem as centenas de vidas ceifadas em prol de um lucro que nunca retorna para a população? Como eu sempre coloco aqui no Conexão Planeta, nós nunca deixamos de ser uma colônia.

Ao fazer a decisão política de basear nossa economia na exportação de commodities, nos condenamos eternamente a vender banana e comprar doce de banana. A vender minério bruto e comprar aço. A vender nossas montanhas por alguns trocados e comprar iPhones caríssimos de última geração. É o preço que pagamos por não investir em ciência e tecnologia, por não diversificar nossa matriz produtiva e energética, por transformar nosso patrimônio ambiental e cultural em ações na bolsa de valores.

Como diria Gabriel Pensador, “até quando vai ficar tomando porrada, até quando vai ficar sem fazer nada, até quando, até quando?”

Foto: Augusto Milagre e Gomes

2 comentários em “Vale, descomissionar barragens não vai resolver o problema. O buraco é muito mais embaixo

  • 15 de fevereiro de 2019 em 10:12 AM
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    Decididamente o Planeta Terra não está em boas mãos. Errou, quem delegou poderes superlativos, embora temporários, aos terráqueos detentores do predomínio econômico, para os quais a prioridade é mais poder e dinheiro, ao invés da vida de pessoas, animais e natureza. Sempre que o dinheiro for primordial, a corda vai arrebentar no lado fraco dos inocentes, que pagam com a vida a mordomia dos ricos, como tem sido, desde sempre. Os prejuízos diretos de vidas ceifadas de uma tragada só ou aqueles danos que, a médio e longo prazo vão acarretar poluição ambiental, sonora, atmosférica, contaminação das águas e destruição das florestas para as futuras gerações, estão na conta dos responsáveis sem responsabilidade destes humanos sem noção que estão nem aí para a verdadeira riqueza a ser preservada e protegida, isto é, a pessoa e sua casa planetária. Ressarcimentos e indenizações após tragédias anunciadas e programadas soam como um tapa na cara dos sobreviventes, porque os queridos mortos deles não voltam, nem seu recanto bucólico cheio de paz que plantaram acreditando que a vida é bela. Não foi para eles. Mas quem sabe continuará sendo para aqueles que construíram seu império sobre a lama mas que não morreram atingidos por ela e que continuarão vivos e ricos, apesar das ninharias pagas, e quem sabe felizes, se os remorsos deixarem, achando ser possível pagar o que não tem preço e não tem volta, para as vítimas que continuarão eternas vítimas, ainda que se lhes “doure a pílula”. Poderosos se acreditam deuses e quase estão certos. Deuses do mal fazem isso, não os do Bem.
    https://incrivel.club/admiracao-curiosidades/os-12-materiais-mais-valiosos-do-planeta-103510/

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Augusto Gomes

Biólogo, consultor, documentarista de natureza e contador de histórias ambientais. Há 10 anos dedica-se à pesquisa e conservação dos Campos Rupestres, onde desenvolveu sua graduação e mestrado. Além dos trabalhos técnico-científicos, Augusto vem atuando extensivamente na documentação da natureza Sul-Americana desde 2009. Seus projetos em andamento giram em torno do patrimônio ambiental, histórico e cultural associado aos Campos Rupestres da Cordilheira do Espinhaço e às mudanças climáticas em montanhas tropicais. É colaborador da National Geographic, World Nomads, Biographic Magazine, Conexão Planeta e diversas organizações e plataformas voltadas para ciência, aventura e conservação, para as quais escreve e fotografa. Conheça mais sobre seu trabalho pelo Instagram e em seu site.