Um encontro poético e político de sotaques

Um encontro poético e político de sotaques

Dessas minhas últimas andanças por Porto Alegre e São Paulo, fiquei com alguns sotaques na minha cabeça: alemão, coreano, japonês…

O alemão é traduzível para mim, mas os outros… Só na vontade. Ainda bem que a percepção e apreensão podem percorrer caminhos inimagináveis, bastando um pouco, ou proporcionando viagens outras sem tirar os pés dessa nossa terrinha que – só para ninguém dizer que reneguei o assunto – sabe perder como ninguém.  Afinal o que é uma derrota no futebol, perto da perda de ânimo pela falta de opção na hora de buscar saúde, educação, boa alimentação. Isso em contraste com a facilidade de detectar os fartos desmandos da política e do capital sonegador que se lambuza com heranças e benefícios. Essas coisas que nós brasileiros com jeito alemão, coreano ou japonês conhecemos tão bem.

Vou deixar aqui uma palavra que, vai por mim, deveria ser aprendida em todas as línguas. Estou querendo organizar uma passeata de brasileiros, migrantes, amantes da justiça… Todo mundo sem preguiça, gritando: Genug! 충분히!  十分!  Um Basta universal na cabeça da corja que manda e desmanda nesse país. Põe lá no Google e aprende em mais umas cinco línguas para sair declamando, cantando, poetando em voz alta pela rua feito doido.

Alguma coisa tem que dar resultado nessas paragens. Não é possível que permaneçamos nessa pasmaceira ditatorial e triste que mantém nossas dores anônimas. Para cada uma delas um Basta. Vai lá! Olha… O sofá ainda acaba engolindo o que resta da sua chama de reação.  Acende a fogueira do meu coração… Organizemos protestos poliglotais nas festas julinas. Para cada pulo da fogueira um Basta unânime que reivindica reverberação no uníssono dos giros que se espiralizam em sei lá quantas dimensões.

Exposição Mundos Possíveis, de Hilma Af Klint, na Pinacoteca-SP. Sala com as obras Caos Primordial. Foto: Divulgação

Perdão… Essa frase viajandona foi provocada pela visita à exposição de Hilma Af Klint na Pinacoteca. Não vou me alongar aqui, mas, se você está em São Paulo, vai lá ver o que é abstrair a forma para preenchê-la de significado, símbolo… Se der sorte de pegar uma visita mediada com a Luciana Pinheiro (como eu peguei bem por acaso, melhor).

Há muita coisa que não se deduz facilmente nem lá, nem no meu caos babilônico. Me vi num encontrão com os femininos e masculinos que nos habitam. Uma marca registrada do espiritual que habitava o corpo e alma desta sueca pioneira no campo da arte abstrata, mas que passou despercebida durante grande parte do século XX, como tantas mulheres artistas. Pensando aqui… Talvez tenha sido embuída dessa vontade de busca que a obra de Hilma produziu em mim que resolvi fazer esse post. Uma busca para preservar, sem que isso impeça de ir para frente. Mas, o avançar pede outros padrões e necessidades. Um pé no passado para não se perder no futuro.

Isso ficou muito claro para mim quando acompanhei o trabalho hercúleo que o Centro Cultural 25 de Julho faz para manter viva a tradição alemã. Teve presidente que para não deixar morrer o grupo de dança folclórico infantil ia de casa em casa pegando as crianças para a aula. O prédio que cresceu ao lado do clube agora impede que os bailes – fonte de renda – aconteçam por causa do barulho.

Olha o nome do show que fizeram no clube esses dias: Prédios Harmônicos –, celebrando 54 anos de música, do Expresso 25, com arranjos de monumentos (sim a palavra estava no texto de chamada do show) da MPB e música latina arquitetados pelo maestro Pablo Trindade-Roballo e com o acabamento poético de Débora Finocchiaro. Esse nome nos espetáculo não parece um caminho de puro bom humor e ironia para tentar solucionar os problemas? Queria ainda estar lá para ter visto…

Os mantenedores também estão tentando fazer saraus na parte da tarde com apresentação de professores, tocando um repertório versátil de música popular e erudita. Há de dar certo. Vai ter um no próximo dia 21 de julho. Se você é de Porto Alegre, taí uma oportunidade de conhecer um clube das antigas que se alimenta de cultura alemã. E também pode alimentar você com os sabores típicos de lá. Como é boa aquela bretzel com uma manteguinha…

Se você é daqueles que gosta de sabores diferentes, também pode experimentar o sushi coreano comprado baratinho nas lojas coreanas da Rua Prates, no Bom Retiro, já me transportando para São Paulo. Ou pode ficar de olho nos cursos de gastronomia do Centro Cultural Hallyu para quem quer aprender a preparar pratos tradicionais como kimchi, bulgogi e bibimbap. Fiquei feliz em saber que, apesar das dificuldades para manter centros culturais e clubes, o Hallyu foi aberto há cerca de dois anos para fortalecer os laços entre a comunidade coreana – que começou a chegar em São Paulo em 1963 – e a população local. Pelo menos é isso que se espera. Que gente de todos os sotaques se interessem por ver as exposições de arte, eventos e palestras. O instituto também tem uma programação fixa de cursos: aulas de língua, pintura, artesanato, costura e cerâmica coreanas.

Quem gosta de música pode aprender canto coreano e ter aulas de instrumentos tradicionais e modernos. Quem está mais para dança pode entrar em contato com coreografias tradicionais ou de K-Pop. Agora o triste é você querer saber mais sobre os sabores japoneses e ir parar na exposição Aromas e Sabores na Japan House

Exposição Aromas e Sabores. Foto: Divulgação

Que chata essa tentativa de reabilitação, de mascararamento dos malefícios do glutamato monosódico e outras porcarias que integram os sabores japoneses e os sabores na nossa mesa. E olha que eu amo sushi. Lindo o formato da exposição que possibilita ao visitante o aprendizado por meio de experiências práticas para responder questões como: quais os sabores básicos (doce, amargo, azedo, salgado e umami) e como o corpo humano os identifica (é isso que diz o belo texto da apresentação). Mas, simplesmente passar batido pelo problema, para mim, é falta de responsabilidade social.

Chata também a curadoria da exposição Afro-atlântica no MASP e outros espaços da cidade. Louvável e importante, claro, a iniciativa de reunir obras de artistas negros ou que representaram negros, mas que preguiça de ver tanta obra de gente dos Estados Unidos. O subsolo está lindo e quero fazer um próximo texto sobre algumas obras que estão lá. Mas, o primeiro andar… Não adianta abrir a exposição com imagens de Terra em Transe, de Glauber Rocha, um reconhecido crítico da cultura norte-americana e da homogeneização espaçosa e cansativa que continua invadindo o país.

É óbvio o valor das obras e artistas, a beleza da intenção e da forma, mas, poxa, tem muito país no mundo, há muita opção para ser conhecida. O número de obras dos Estados Unidos é desproporcional. Bem honestamente: não dou prioridade para saber o que acontece lá. Certo, os artistas são referência para o mundo e podem colaborar para a luta contra o preconceito e coisa e tal… Entendo, entendo… Mas, eu, de minha parte, quero dar valor e divulgar o que vem de outros lugares. Quero saber de lutas e ideias de artistas que não têm espaço na mídia. Cansada desse sotaque norte-americano reverberando no meu ouvido. Desculpa aí.

Mas, tudo bem. Isso não estragou a viagem porque fiquei realmente feliz com essa opção de espalhar obras de artistas negros pela cidade. Além do MASP, elas estão no Centro Cultural Banco do Brasil e Instituto Tomie Ohtake. Tudo ao mesmo tempo. Que não seja só uma onda. Que os nomes negros continuem a ter mais exposições, em mais espaços e que passem também a frequentar de forma equânime as galerias e museus ao lado de outros artistas. Bom seria se não precisassem lutar por espaço, se não precisassem ter política afirmativa, exposição só de negros. Que estivessem nas galerias na mesma proporção que se vê o DNA com sotaque negro nas ruas desse país… Ê Brasil que, tantas e tantas vezes, imprime mais valor aos sotaques de fora… Oxi! Bah! Que saco!

Obra de Mário Cravo Junior que encontrei na exposição do MASP. Foi feita em 1986. Me aproprio aqui, usando como meu original emoji para amenizar as crítica do post. Nada pessoal…

Só mesmo inventando alguma distração para não deixar a indignação tomar conta. Pode ser um joguinho, uma coisa lúdica, que não ultrapasse o limite da confraternização. Porque essas coisas de jogo, jogo mesmo, esse negócio profissional que se esconde atrás de portas estranhas, como vi lá no bairro coreano, no Bom Retiro ou ali em Pinheiros, me deprimem, confesso. Sou mais um coisinha leve, tipo 21, dessas que tanto faz perder ou ganhar. Que o melhor é só estar. Que deixe encontrar o bastar, antes daquele viciar doente, doído, desomesticado, desorientado que pode até parecer bom, mas, como tudo que se repete, vira mesmice e chateação para a própria pessoa e para quem tem que aguentar.

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.