Algumas pessoas me dão recomendações que, só não sigo de olhos fechados, porque senão não dá para fotografar. O Mario Cohn Haft está entre elas! Ele é o ornitólogo que idealizou e executou a primeira expedição científica para a Serra da Mocidade, em Roraima (já falei dessa expedição e do Mario, aqui, no blog), que tem sua área dividida entre o Parque Nacional de mesmo nome, a Terra Indígena Yanomami e uma reserva do Exército.
Tive o privilégio de ser convidado para fazer o registro fotográfico desse incrível trabalho dos pesquisadores, na busca de descrever a diversidade da fauna e flora da região. Foram 25 intensos dias em campo, divididos em duas bases, onde estava também sendo filmado um documentário sobre o processo de busca de novas espécies na Amazônia.
Uma noite, enquanto editava as fotos do dia, ouvi de longe o Mario falar “então, o Marquinhos vai junto lá, também”, numa conversa com o pessoal da equipe de filmagem. Como, em geral, gosto de saber o que vai acontecer comigo, levantei e fui perguntar para onde eu ia. A resposta que tive foi: “Fica tranquilo que você vai fotografar um bicho legal! Mas coloca seu equipamento numa bolsa estanque porque vamos atravessar um rio fundo”. Não foi muito informativo o diálogo. Mas como confio no Mario, me preparei para acompanhá-los.
No dia seguinte, por volta das 9h da manhã, saímos para nossa sessão fotográfica. Não era longe, mas precisamos atravessar o Rio Pacu que, naquele trecho, devia ter uns três metros de profundidade. Como eu levava duas teleobjetivas grandes (uma delas pesando 5kg) e tripé, não havia como atravessar nadando.
O Ney (um dos sensacionais mateiros da expedição) já havia preparado uma pequena balsa com garrafões de água vazios e madeira. Colocamos os equipamentos de fotografia e filmagem sobre ele (tudo em bolsas estanques, claro!) e atravessamos o rio, nadando e empurrando a balsa. Chegamos em um lugar mais aberto, com arbustos repletos de pequenas flores vermelhas. E ali descobri que o objetivo era fotografar um beija-flor minúsculo.
Esperamos até perto das 10h, quando o sol e o calor já eram suficientes para ferver os miolos, até que o bichinho deu o ar de sua graça. Ele vinha se alimentar nas flores, sempre com aquela pressa típica dos beija-flores. Como minha melhor objetiva era muito pesada para usar na mão, tentava interceptar seus movimentos rápidos com o equipamento no tripé, o que era mais um sofrimento. Enquanto ele, entre uma refeição e outra, voava para se abrigar em uma árvore no outro lado do rio (na sombra, claro!).
Foram cerca de duas horas literalmente cozinhando sob o sol, até que consegui uma foto que considerei razoável. De fato, a foto nem era razoável, mas como ninguém mais suportava o calor, decretamos que era suficiente.
De volta ao acampamento, tomei uns dois litros de água para reidratar e fui editar as imagens. Só aí consegui entender o por quê de tanto esforço: o bicho era maravilhoso! As condições no lugar eram tão ruins que eu, na verdade, nem tinha conseguido ver direito como ele era, nem ao vivo e nem no LCD da câmera.
E, já na sombra, a foto “razoável” me pareceu bem ruim para um bicho tão lindo. Tentei mobilizar a equipe para voltarmos no dia seguinte, mas o único que se animou foi o Ney. E, assim, na manhã posterior, lá fomos nós de novo, torrar no sol equatorial, para tentar fazer uma foto melhor.
Então, comecei a perceber que o bichinho normalmente percorria o mesmo caminho nos arbustos. E vi que passou umas três vezes seguidas na mesma flor. Mudei a estratégia: deixei a câmera com lente pesada apontada para aquela flor e, enquanto ele não chegava perto, tentava fotografar na mão com a lente mais leve. Na segunda passagem dele, BINGO! Estava feita a foto deste post.
Ainda rolou disposição suficiente para ficar mais um tempo até conseguir fazer um vídeo dele na mesma flor. Filmei a pedido do diretor do documentário, o que acabou marcando minha estreia como cinegrafista.
Mas, claro, na edição achei que o vídeo poderia ter ficado melhor. Considerei, por alguns segundos, a possibilidade de mais um retorno no dia seguinte, mas imediatamente abortei a ideia. Afinal, torrar por duas horas no sol só uma vez foi pouco, duas foi bom, mas três já era demais!
Dados do bichinho: Beija-flor-de-leque-canela (Lophornis ornatus)
Dados da foto:
– Câmera D810 + objetiva Nikon AFS 400 f/2.8G ED VR + teleconverter Nikon TC-14E
– ISO 1800, abertura f/8 e velocidade 1/2000 s
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Ô Marcão, mas aí tem alma, moquirido e da boa!
Este é o jeito pelo qual os índios afirmam que a foto rouba o espírito, e eles têm razão!
Pelo registro no papel por sí só, não, mas pela recomposição da cena tal qual aconteceu, onde só o fotógrafo pode fazer, tal qual um xamã, por caminhos que só ele sabe.
É certo que outros personagens estavam lá, assistindo a cena, mas a alma de verdade, o espírito puro, só chegou até a gente graças aos teus olhos, sinapses e, enfim, aos dedos no teclado, caminho que o índio sabiamente estica pela fala e você, pela letra. Um dia vamos nos encontrar pelaí e quero ouvir um bocado destas almas que te rodeiam. Abração, mano!
Mermão querido, não vejo a hora da gente criar nossas histórias conjuntas de mato, bichos e natureza. Abraço e valeu pelas palavras!
Certamente muitos elementais já se mostraram em suas fotos não é ?