Travessia no Espinhaço alia ecoturismo e cultura popular


O post de hoje conta um pouco mais sobre a iniciativa de moradores da região localizada nos arredores de Diamantina, em Minas Gerais, sobre a qual escrevi no post anterior. Ao buscar uma alternativa para o desenvolvimento local, eles criaram um roteiro de ecoturismo que integra a experiência na natureza ao contato direto com as comunidades tradicionais do Espinhaço.

 

Das cercanias de Mendanha, uma das opções para os caminhantes é atravessar a APA Rio Manso em direção à Fazenda Raiz. A partir da Cachoeira da Fábrica, em território que pertence ao município de Couto de Magalhães de Minas, são 14 quilômetros que separam um ponto do outro. Os seis primeiros passam pelo Salto dos Veados, uma área com remanescentes de extração de cristais; cachoeiras e poções; várias espécies típicas da flora como pequizeiro, jatobá, mangaba e gabiroba; e lapas como a dos Cabritos com inscrições rupestres que datam de 300 anos antes da chegada dos portugueses ao Brasil.

A trilha leva à comunidade rural de Abóboras, que possui 10 casas dispersas com quintal e horta. Rente ao emaranhado de campinas, a casa de Neusa Filomena Moura Freitas, 79 anos, e Maria Madalena Freitas, mais conhecida como Madá, é pouso para horinhas de descanso. Mãe e filha oferecem refeições aos visitantes que circulam pelo vilarejo durante a travessia dos parques. Neusa, descendente de tropeiros e garimpeiros, conta que o lugar surgiu há mais de 200 anos. “O meu avô já trabalhava com alambique, na roça.” O perfume da comida mineira invade os cômodos da morada acolhedora. Em Minas Gerais, a cozinha é sala de estar. Nela, as pessoas se ajeitam, bebericam, petiscam e conversam. Entre os pratos servidos não faltam o angu, o feijão tropeiro e o frango caipira. Parte dos alimentos são comprados em Amendoim, uma vila agrícola vizinha.

Rota dos vilarejos

O local se situa a 20 quilômetros de Alecrim, uma comunidade com 300 habitantes que vivem da agricultura familiar. Marilace do Rosário Lopes Almeida e Wilson José Almeida são conhecidos pela produção artesanal de cachaça. “Somos nós dois a fazer a bebida num engenho movido a lenha. É com o dinheiro da cachaça que a gente compra as despesas para casa”, relata. Seu Wilson vende a pinga que fabrica para vizinhos e nas feiras de Diamantina e arreadores.

O ponto seguinte da travessia é o Parque Estadual do Rio Preto. Ao chegar, o turista tem acesso a 12.185 hectares com infraestrutura completa. Há passarelas, placas de sinalização, decks, alojamentos, camping e restaurante, além de uma equipe de guias especializada. Segundo Antônio Augusto Tonhão de Almeida, gerente e fundador da Unidade de Conservação, o diferencial é o recurso humano. “Os funcionários cresceram no parque, vestem a camisa, incorporaram a área”, diz. Os principais atrativos são o Pico Dois Irmãos, as cachoeiras do Crioulo e das Sempre-Vivas, e a chapada do Couto.

Povos do Espinhaço

Do alto dos campos a beiradas de rio, as comunidades constituem um núcleo representativo de cultura popular no Espinhaço. Seus moradores são guardiões de saberes seculares. A história de Minas Gerais se atrela ao jeito de ser das pessoas que habitam os interiores. Um dos trechos da travessia dos parques leva o viajante ao PARNA das Sempre-Vivas. No caminho, São João da Chapada é o vilarejo com maior número de casas. Pelas ruelas estreitas, nota-se a predominância da origem quilombola.

Ana Afonsa Pereira, 77 anos, a Dona Miúda, relata que seu bisavô era dono de escravo. “Ele tinha que mandar pra não ser mandado, sabe? A família do meu pai é da raça que fundou quilombo perto de Quartel do Indaiá. Até hoje a gente mantém a tradição. Da dança, dos instrumentos. Chama chula. Os escravos que deram esse nome. Quando eles cansavam, começavam a dançar. Era pra descarregar o corpo. No outro dia, já estavam bons pro trabalho de novo.” A chula é representada de dezembro a janeiro, no mesmo período da folia de reis. Enquanto homens tocam pandeiro, sanfona, violão e caixa, mulheres entoam versos em uma espécie de disputa. Palavras de origem banto são pronunciadas em alguns momentos.

No mesmo distrito, a poucas quadras da casa da dançarina, Valmira de Lurdes Miranda, 46 anos, é sócia de uma pensão familiar. Em 2006, o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Idene) promoveu um curso de uma semana no local. “Aprendi como receber as pessoas e hoje temos duas suítes e um quarto disponíveis”, diz. O trânsito de turistas ainda é pouco, mas já mudou a realidade da moradora. “Em São João, são quatro casas que recebem. Duas hospedam e oferecem alimentação, eu e a Dona Nilma. As outras só hospedam. Eu gosto. Fazemos muitas amizades.”

Sertão é dentro da gente

O roteiro que alia natureza e pessoas é diversificado. Trata-se de uma região com grande potencial a ser explorado. O conjunto engloba elementos que fazem do passeio uma experiência peculiar para o turista. Durante a travessia, há caminhadas mais técnicas, outras mais leves. O contato direto com paisagens e cultura é o diferencial. Felipe Ribeiro esclarece que a procura ainda é pequena – a operadora Serra Sertão guia 500 pessoas por ano. O retorno é gradativo. “O propósito é criar uma rede em que as pessoas consigam se autogerir, comunicar e integrar. A geração de trabalho e renda é fundamental para a preservação do ambiente de montanha da Serra do Espinhaço e manutenção dos povoados. O turismo é uma alternativa promissora”, afirma.

No sertão mineiro, o desafio é padrinho do bem maior: a perseverança. Já dizia o poeta espanhol, Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho; faz-se o caminho ao andar”.

Rua de Diamantina, onde, ao fundo, localiza-se a casa de Chica da Silva

Fotos: Tom Alves

8 comentários em “Travessia no Espinhaço alia ecoturismo e cultura popular

  • 15 de fevereiro de 2017 em 11:09 AM
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    Lindo e inspirador texto, Carol!!!! Como é bom relembrar destes lugares, deste povo e desta viagem!

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    • 16 de fevereiro de 2017 em 10:23 AM
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      Obrigada, Tomzinho :D Tua opinião é valiosa, sabe disso! Foi uma viagem muito especial, de troca e aprendizado! Ela ainda renderá muitos frutos. Beijão

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  • 20 de fevereiro de 2017 em 10:23 AM
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    Conheço relativamente bem a região e gostaria de contribuir em futuro próximo, onde couber. Lindos locais, pouco explorados, mas com enorme potencial. Abs

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    • 22 de fevereiro de 2017 em 12:11 PM
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      Verdade José Eduardo, esta região é belíssima, mas pouco exploda, pelo menos no que diz respeito à prática da vida ao ar livre e ao turismo de base comunitária. Assim que puder, dê um pulo lá, sim. Abraços

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  • 20 de fevereiro de 2017 em 4:33 PM
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    Conheci o local, não com a operadora Serra Sertão. Depois fiquei conhecendo a competência de seus roteiros. Vale a pena!

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    • 12 de abril de 2017 em 12:54 AM
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      Vale muito a pena, Werter!!!

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  • 21 de fevereiro de 2017 em 2:45 AM
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    Teria um telefone de contato para ver detalhes sobre a realização desta travessia?

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Carolina Pinheiro

Jornalista e documentarista, colabora com importantes publicações nacionais e internacionais. Viaja o Brasil atrás das histórias do povo, de cantos que não constam no mapa, de lugares distantes das principais rodovias. Traz a reportagem na veia. Em 2014, fundou a Nascente Casa Editorial, onde trabalha com a produção de conteúdo sobre cultura popular, meio ambiente e turismo sustentável no país.