Sobre hortas e crianças


sobre hortas e crianças

Eu não me lembro exatamente como tudo começou. O fato é que alguns anos atrás, quando meus filhos eram menores, resolvi que era hora de termos uma horta. Afinal moramos numa casa com quintal e o “projeto horta” fazia todo sentido. As crianças teriam contato com o processo de plantar, cultivar e colher, criariam um vínculo com as plantas e provavelmente teriam mais interesse em comer todas aquelas verduras que plantaríamos. O único problema é a minha total e completa falta de talento para o cultivo de ervas e hortaliças. Eu já tinha consciência dessa característica pessoal na época, mas mesmo assim, resolvi ir em frente. Afinal, essa era uma experiência que eu queria muito que meus filhos tivessem, então me esforçaria.

Comprei terra, vasos grandes, plaquinhas e muitas mudas de verduras e temperos. Com a ajuda do jardineiro e a participação animada das crianças, passei duas tardes preparando a nossa pequena plantação caseira. Ficou linda e durou uns três meses, ao fim dos quais comemos algumas alfaces, rúculas e colhemos folhas de manjericão e hortelã. Nunca mais achei tempo para procurar sementes e mudas e olhava com pesar para aqueles vasos abandonados, pensando que talvez essa história de horta não tivesse sido uma ideia muito boa.

O tempo passou e, em algum momento, meu filho menor percebeu que aquele grande vaso redondo, já sem uso, era um lugar muito legal para brincar. Nessa mesma época ele também começou a acompanhar o pai no cultivo de mudas a partir de sementes de árvores coletadas em nossas viagens e passeios. Nosso jardim sempre foi um lugar muito especial para ele e as sementes das árvores que temos sempre chamaram muito a sua atenção. Por isso, ele sempre manteve uma coleção delas, vindas do nosso quintal e também de outros lugares. E assim, por volta dos 4 anos, com quase nenhuma orientação e de forma totalmente autônoma, ele passou a tomar conta da horta, que passou a ser conhecida na família como seu pedaço de terra particular.

Desde então, passaram-se dois anos e nesse tempo ele plantou milho, feijão, abóbora, hortelã, manjericão, castanha do maranhão, tomate, pinhão e alface. Todas as sementes e mudas ele mesmo conseguiu sozinho ou por meio de outras crianças e adultos. Pediu e ganhou terra adubada em duas ou três ocasiões. Muitas vezes recolheu folhas secas e montou uma camada de matéria orgânica na superfície da horta, além de pedir cascas de ovo e de frutas para adubá-la. Estaqueou, regou e selecionou as plantas que ele desejava que crescessem, manejando o desenvolvimento e a expansão de muitas mudas. Transplantou pequenas mudas de árvores para saquinhos, para que crescessem mais e depois fossem plantadas por aí ou virassem presentes e lembrancinhas na sua festa de 5 anos. Viveu fracassos quando as sementes não vingaram ou quando algumas plantas apodreceram depois de serem regadas em excesso.

E assim, num misto de admiração e encantamento, assisti meu filho se tornar um jardineiro, um horticultor, uma pessoa capaz de cultivar um pedaço de terra, semeando, plantando e colhendo. Curioso notar que ele nunca demonstrou grande interesse pelo canteiro que há em sua escola ou outros que visitamos durante viagens. É a sua horta que o atrai e na qual ele é capaz de passar longas horas em uma linda entrega: manejando a terra e as plantas em completa sintonia com seu trabalho. É dela que ele sente saudades quando se ausenta de casa, e é a sua horta o primeiro lugar que ele vai quando chega de uma viagem ou da escola.

Embora meu “projeto horta” não tenha saído como eu imaginava – um lindo canteiro que produzisse nossa salada de cada dia – ele foi muito além, dando a um menino de 4 anos a chance de cultivar um pedaço de terra no qual suas sementes germinam e florescem tal qual ele mesmo. Esse processo me mostrou que é preciso dar espaço para que as crianças liderem seus próprios caminhos para encontrar-se consigo mesmas e com o mundo natural. As hortas são ferramentas incríveis de aproximação entre as crianças e a natureza, mas elas precisam ser usadas com cuidado para que possam realmente exercer esse papel e não ser apenas mais um “projeto” que nós, adultos, encabeçamos e no qual a criança tem pouco ou nenhum protagonismo.

Um exemplo de como o cultivo da terra pode promover engajamento e afeto é a Terra das Crianças, idealizada por Joaquim Legía, diretor da Asociación para la Niñez y su Ambiente – ANIA, no Peru. A ideia é simples e brilhante: outorgar a cada criança um pequeno pedaço de terra para que ela possa cultivar a vida e promover a biodiversidade, gerando bem-estar para si mesma, para outras pessoas e para a natureza, sendo por isso reconhecida como agente de mudanças para um mundo sustentável. Seu testemunho conta como uma experiência semelhante vivida por ele no quintal da sua infância o inspirou a ajudar mais crianças a desenvolverem um vínculo duradouro com o mundo natural.

Uma horta não é apenas um lugar onde cultivamos plantas, mas também um lugar onde cultivamos esperanças e nutrimos ideias, onde muitos planos crescem de cada pensamento semeado. Amor, atenção e criatividade. Requer vigilância, manutenção e cuidado. Ato de fé no futuro que deve ser renovado por meio de práticas diárias. E também implica riscos, pois plantar é lidar com o fracasso, e como poderia ser de outra forma? Nesse verão meu filho ganhou um pedaço de terra maior, um pedido recorrente. Meu desejo é que este seja o solo fértil para que sua relação com a natureza contemple todo aprendizado, sobre as plantas e sobre si mesmo, que uma horta é capaz de oferecer.

Foto: arquivo pessoal

2 comentários em “Sobre hortas e crianças

  • 15 de janeiro de 2019 em 11:11 AM
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    Crianças estão chegando, quem sabe, para reconstruir onde adultos destruíram, Quem sabe seu projeto possa dar certo se a gente não impedi-los de salvar a Terra e se a gente aprender com eles, tudo o que sabem.

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  • 4 de março de 2019 em 8:59 PM
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    Ótimo texto. Sou apaixonada por abacate. Isso veio da minha infância . Era uma delícia colher e comer abacates. Tínhamos horta também. Pequena, com couve, cebolinhas, tomates… era prazeroso cuidar , ver crescer, colher, saborear. Hoje amo plantas. Moro em apartamento. Mesmo assim tento cultivar algumas. Tudo fruto do que aprendi na infância. Até a ansiedade melhora, pq tem que se aprender a esperar.

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.