Shopping é lugar de criança?

Qualquer observador mais atento percebe o que as pesquisas apontam com cada vez mais frequência: as ruas estão deixando de ser espaço de lazer e encontros e passando a ser usadas como espaço privilegiado para veículos motores. Em movimento quase simultâneo, passamos a nos recolher a espaços fechados, privados e, em muitos casos, orientados pelo consumo. A depender do contexto social, econômico e territorial, a experiência de cidade e o envolvimento das crianças com o espaço público varia: vai  de uma utilização mais intensa, passando por uma mistura entre público e privado, até chegar à experiência centrada no privado. Há múltiplas infâncias e, consequentemente, múltiplas formas de experiências urbanas.

Aqui, vamos tratar das crianças que pouco caminham pelas ruas e que vivenciam, prioritariamente, espaços privados: apartamentos, escolas, condomínios, shoppings e clubes. Para muitas dessas crianças, lazer e passeio em família são sinônimos de ir ao shopping. Não apenas quando há necessidade de comprar algo, mas também quando é tempo de convívio ou como opção de entretenimento.

Essas famílias são o público-alvo principal de grandes centros comerciais que nasceram com a proposta de facilitar a vida dos consumidores ao reunir, em um mesmo complexo, bens de consumo e serviços. Diante dos problemas de segurança das cidades, do tempo escasso, do aumento das compras online, os shoppings passaram ainvestir mais fortemente em opções de lazer e de entretenimento direcionadas às crianças. 

Se você frequenta esses espaços deve ter notado que, cada vez mais,  encontramos piscinas de bolinhas, bungee jumps, carros elétricos, locais de jogos e brincadeiras, áreas temáticas (muitas patrocinadas por marcas), entre outras novidades. Quase todas essas atrações são pagas. Para os shoppings, a ampliação e diversificação das opções de entretenimento são estratégias que aumentam o tempo de permanência das famílias e, consequentemente, a probabilidade de compras, bem como a fidelização do pequeno frequentador, que passa a associar diversão e lazer ao consumo.

Os shoppings estão deixando de ser centros de compras e serviços para se tornarem importantes centros de lazer, especialmente para famílias, crianças e também adolescentes desacompanhados. Diante desse cenário, há que se perguntar: o que as crianças perdem com isso?

Primeiramente, a oportunidade de interagir com um ambiente que favoreça o bem-estar. Inúmeras pesquisas mostram que as crianças se beneficiam enormemente de espaços amplos e diversos, especialmente ao ar livre, onde elas possam exercer seu fazer mais espontâneo – o brincar – explorando e experimentando. Nos shoppings, via de regra, é preciso cuidado para não estragar, sujar e atrapalhar, o brincar é controlado e mediado por máquinas ou adultos e há estímulos em excesso, principalmente de luzes e sons. 

Não menos importante, perdemos a oportunidade de criar vínculos, com a cidade e com o outro. Afinal, os shoppings são propriedades privadas destinadas ao uso coletivo, que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. Em tempos onde perdemos nosso vínculo com o território em que vivemos, poucos têm o privilégio de sentir que pertencem a um lugar e que esse lugar lhes pertence. Precisamos pensar em nossas práticas cotidianas e como elas favorecem, ou não, a apropriação dos espaços urbanos pela infância, contribuindo tanto para a reelaboração da noção de cidade como espaço comum, democrático e compartilhado, quanto para a construção e a vivência da cidadania. 

As férias escolares de inverno se aproximam. Haverá dias de sol e um pouco mais de calor, perfeitos para um passeio na praça ou no parque mais próximo. E haverá dias chuvosos e frios, onde tudo que vamos querer é um lugar seco e quente. Nestes dias, nosso convite é para que você explore os espaços públicos da sua cidade como bibliotecas, centros culturais, museus, e outros tantos. As praças e parques públicos são espaços que estimulam o brincar livre e criativo pela criança. 

O jornalista Richard Louv, autor do livro ‘A Última Criança na Natureza’, afirma que as crianças se engajam em um brincar mais criativo, são mais propensas a inventar suas próprias brincadeiras e mais inclusivas quando brincam ao ar livre. Os shoppings podem ser locais convenientes para o consumo de bens e serviços, mas também contribuem para o empobrecimento da experiência pública e de cidade das crianças.

Que nossos encontros possam ser a céu aberto ou em espaços públicos realmente destinados a relações e aprendizados, desvinculados do consumo, numa fruição viva e alegre com o que pulsa na cidade. E que, nesses encontros, as crianças tenham liberdade e autonomia para correr, explorar e se encantar com o mundo, atribuindo-lhe sentidos por meio de seus encontros, experiências e vivências.

Foto: Renata Ursaia

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Livia Cataruzzi e Maria Isabel Amando de Barros

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, e secretária-geral da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP; Maria Isabel Amando de Barros é engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, e desde 2015 trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana