Sete dias com os índios Yawalapiti


Foi pouco tempo, mas o suficiente para me arrebatar a alma. Vivi sete dias e seis noites do mês de julho na Aldeia Tuatuari, com os índios Yawalapiti, no Alto Xingu. Na aldeia liderada pelo lendário e generoso cacique Aritana, que habitava meu imaginário há muitos anos. A emoção de conhecê-lo é inenarrável, mas vou contar sobre isso em outro momento.

Mas já quero contar sobre a essência da liderança para os Yawalapiti: lá, ‘ser cacique’ não significa ‘governar sozinho’! Ele é o líder, sim, mas compartilha a condução da aldeia com outros dois caciques, também muito fortes e generosos: Aripirá (à esquerda, na foto) e Macauana, em conversa animada com Aritana. E nada é feito sem que todos, na aldeia, estejam de acordo. Estamos precisando (re)aprender o que é democracia com eles…

Usufruí do cotidiano, da beleza e da cultura desse povo na companhia de nove pessoas muito especiais: o fotógrafo Renato Soares (que convive com índios pelo Brasil há quase 30 anos e fala deles em blog exclusivo, aqui no Conexão Planeta), a jornalista e fotógrafa Lucíola Zvarick (mulher e sócia de Renato), o sempre animado ex-publicitário e ‘quase índio’ André Leite, e os participantes da expedição fotográfica organizada por esse trio, pela primeira vez, ao Xingu.

Todos são amantes da fotografia, da natureza, de gente e de viagens e, com suas câmeras poderosas e seu olhar apurado, fizeram registros incríveis, eternizaram emoções. Qualquer hora eu mostro aqui também. E acredito que, além do espírito alegre que permeou nossa convivência, a diversidade de suas origens deu um ‘tempero’ extra à experiência: Alejandra Faúndez é chilena, Ludovic Seidoux, francês, Thierry Rios é gaúcho, Rodrigo Lodi, mineiro como Renato e Lu (o moço também é poeta de mão cheia; sim, vou publicar algumas das linhas que ele escreveu sobre em breve), Alexandra Ramos é carioca (de Itaperuna, interior do estado) e Doró Cross, paulistana como eu.

Abaixo, self feita pelo André, a meu pedido, quando voltávamos de voadeira da visita ao Posto Leonardo, onde viveu Orlando Vilas Boas (O nome é uma homenagem a seu irmão mais novo). Sou eu, na frente, à esquerda, e juro que a animação não foi só para a foto. A gente era sempre assim.

E é inevitável: toda vez que paro para ver e selecionar fotos e vídeos que fiz no Xingu – para ilustrar os textos que quero escrever aqui e também em minhas redes sociais -, me perco no tempo. Por isso, demorei um pouco para publicar sobre a viagem e escolhi o dia de hoje – Dia Internacional dos Povos Indígenas (8/8) – para mostrar um pouco do que me tocou, me emocionou, me arrebatou nessa viagem.

Desejo que todos os brasileiros, um dia, possam sentir o que experimentei e sinto agora. Talvez assim seja possível entender porque é tão importante protegê-los da ganância e da nossa influência, porque é imprescindível preservar sua origem e sua cultura. Os Yawalapiti nos mostraram isso também. Eles estão atentos ao mundo e a seus limites.

E eu só posso agradecer e compartilhar tanta sabedoria e beleza. Vou mostrar mais, mas aos poucos, sem pressa. Como é o tempo no Xingu. Ando aérea. Parece que parte de mim ainda está por lá. Que benção!

Me pego sentindo a água gelada do Rio Tuatuari onde nos banhávamos com as crianças todos os dias. De manhã, foram poucas as vezes em que nos deixamos levar por eles, mas, no final da tarde, era sagrado. Ar quente, água fria e muitas muriçocas para driblar. Quem se importava!

Meninos e meninas nadavam, mergulhavam, competiam, faziam acrobacias, nos levavam à outra margem, onde um mangue lindo nos esperava… Do nosso grupo, as mais animadas eram Lu, Alejandra e Doró. Os demais – Thierry, Alexandra, Rodrigo, Renato e André, se banhavam e brincavam também – claro! -, mas, antes, ficavam de câmeras em punho registrando tudo e aguardando um momento inusitado, precioso. Mas quando largavam a câmera, a farra só aumentava: Rodrigo, por exemplo, era “o terror” das crianças e era chamado de tubarão, imagina. Elas amavam.

Teve um dia em que as meninas sugeriram que fizéssemos uma roda, de mãos dadas – só as mulheres do nosso grupo – e ficamos girando enquanto elas cantavam pra nós. Foi lindo demais! Não canso de ver o vídeo.

Sinto o calor intenso do sol ao atravessar a aldeia em direção à Casa dos Homens (na foto abaixo, bem na direção da minha sombra) ou à casa do Aritana: ambas ficavam ‘distantes’ de nossa ‘oca’ que, na verdade, é uma construção recente e bem diferente das demais, que abriga um centro de cultura – a Casa dos Saberes – onde são realizadas apresentações de projetos da comunidade Yawalapiti, como o de piscicultura, além de cursos.

Todo dia, ao sair da ‘nossa casa Yawalapiti’, era maravilhoso ver o centro da aldeia enorme e vasto – onde estão enterrados os mortos – e as ocas à volta. Imensidão que acolhe.

Também sinto o calor forte na pele ao lembrar de seus rituais, que acompanhamos com o sol a pino.

Me pego vibrando e querendo dançar com os índios na Festa do Peixe ou Tapanawanã. Esse ritual é realizado em qualquer período do ano para alegrar a aldeia e lembra uma lenda que conta que os peixes ensinaram o índio Iritu e seu amigo a brincar com no fundo das águas do Xingu.

Também vibro ao ouvir o som emitido pelas flautas gigantes na Festa das Taquaras. Elas nos lembram da força do coletivo já que precisam ser tocadas em conjunto porque cada uma emite um som especial, complementar. É como uma procissão animada, em que todas as casas são visitadas para que a música e a dança limpem as energias e abram caminho para os bons espíritos. Lindo!

Ouço o grito gutural dos homens na luta de Huka Huka!!! O impacto de seus corpos, um contra o outro, ou na terra seca. Ritmo, força, destreza, rapidez numa ‘dança’ máscula, viril, durante a qual eles gritam Huka diversas vezes. Reverência e respeito ao vencedor, mas também ao perdedor.

Essa luta acontece durante o Kuarup, em agosto, mas tivemos a sorte de assistir alguns ensaios dos Yawalapiti para essa festa.

O Huka Huka é uma luta pela paz, da qual participam homens de várias etnias da Terra Indígena do Xingu (TIX, que antes era chamado de Parque).

Ouço as risadas deliciosas das crianças, em qualquer tempo e lugar.

Na frente de suas casas, em brincadeiras singelas, nos convidando para banhar no Rio Tuatuari, correndo pelo centro da aldeia como se aquele espaço nunca mais fosse acabar. Ou, dengosas, querendo ‘fazer foto’ com o celular e depois se ver e dar muita risada. Ou ainda querendo ficar perto: elas chegavam junto, sentavam ao lado da gente fazendo perguntas ou só olhando nos olhos e sorrindo. Muitas vezes, em bando.

Ah… teve um dia em que foi quase impossível não “desmontar” de emoção. Pelos abraços, pelo carinho e porque algumas crianças diziam, sem nenhuma censura e preconceito contra minhas rugas, “como você é bonita”, ainda passando a mão nos meus cabelos.

Pelo caminho – não importa onde estivéssemos ou para onde fôssemos – sempre havia crianças alegrando a jornada.

Ouço o amanhecer. O canto dos pássaros. Os galos.

Na foto abaixo, está a ‘nossa casa’, à esquerda. Essa eu tirei quando a maioria dos companheiros de expedição ainda estava dormindo, mas o galo já tinha parado de cantar.

Lembro de conversas mágicas, quando alguns índios contavam histórias de espíritos – de Mamaé – e de onças, geralmente antes ou depois do jantar. Narrativas que ainda me deixavam desperta, mesmo já deitada na rede, e me acompanhavam em sonhos.

E o anoitecer? A lua? O céu salpicado de estrelas pequeninas, luminosas, cadentes? Me deixei levar por ele todas as noites. Fecho os olhos e o vejo quando quero, majestoso.

Não tenho fotos desse céu porque o celular e minha câmera não permitem tal proeza, mas registrei a lua todos os dias, quero dizer, todas as noites. Abaixo, ela está imperfeita porque o registro é de celular.

Sinto o cheiro do beiju. Sinto sua textura. Me encanto ao lembrar das mulheres – como Samai, filha de Aritana, na foto abaixo – jogando a farinha de mandioca na chapa quente e criando, com muita habilidade, a tapioca gigante que alimenta a família e nos brindou todas as manhãs.

Um dia, assim que o beiju chegou à ‘nossa casa’, arranquei um pedaço e comi. Olhei pra a ‘tapioca gigante’ de novo, e, como acontecia todos os dias, achei incrível o tamanho da iguaria, lembrando que ela faz parte do cardápio diário da aldeia. Então, resolvi fotografá-la. Mas, pra dar ideia do seu tamanho, coloquei uma banana ao lado. Só de olhar a foto, já me dá água na boca.

E repare na esteira onde está ‘deitado’ o beiju. Esta é outra das habilidades das mulheres Yawalapiti, que varia de modelo (simples, como o da foto, ou com desenhos coloridos) de acordo com o material disponível pela artesã.

Me maravilho ao lembrar dos homens pintando seus próprios corpos ou de outros para os rituais. Amarrando panos coloridos nas pernas, braçadeiras de penas. Pintando costas e cabelos com urucum, meticulosamente. Alguns, com cocares imponentes. Vaidosos e viris.

Todos lindos. Jovens, velhos e meninos, sozinhos ou acompanhados pelas garotas perfeitamente tatuadas com jenipapo e nanquim e com seus cabelos lisos e longos. Tudo pra alegrar a aldeia. E se visitantes houver.

Ah… e eles foram tão generosos e amáveis com a gente! Imagine dez brancos, todos com câmeras e celulares em punho, querendo registrar tudo!! Pois eles não se incomodavam nem um pouco e até posavam, lindos, como Tumin Ypro, campeão de Huka Huka, que liderou as festas na aldeia. Aqui, ele descansava em uma das ocas, numa das pausas do ritual das taquaras e aproveitamos para testar a tal luz de oca, sobre a qual Renato já contou em seu blog, aqui no site. Claro que não cheguei aos pés do professor!

Me recordo das mulheres sorridentes e atentas ao Moitará, encontro para trocas de objetos com nosso grupo. E também da qualidade do que ofereciam, entre seus pertences, para retribuir o objeto escolhido. Generosidade sem tamanho.

Uma tarde, Renato as reuniu para um retrato, logo após reunião que fizeram na Casa dos Homens (que se chama assim porque os homens se reúnem nela, todas as manhãs, mas, na verdade, todos a usam) para tratar de questões de seus interesses. Lu posou com elas. Aproveitamos para fazer este registro e, em seguida, entramos na foto também, mas essa fica para outro dia.

Também me vem à memória a graciosidade feminina tecendo esteiras (como Junko, na foto abaixo, filha da índia Tepori e neta de Aritana), e a força e a rapidez com que descascam e ralam a mandioca. A naturalidade com que zelam pelas ocas.


Por tudo que contei aqui – que representa apenas uma pequena parte do que vivi com os índios Yawalapiti – só posso agradecer, agradecer, agradecer. Para enfatizar esta gratidão (também ao Renato, pela oportunidade), me aproprio de uma palavra linda, de som melódico e potente – que significa ‘tudo bem’ e ‘obrigada’, na língua deles -, que resume tudo que quero dizer agora: Auire!

Abaixo, mais imagens para finalizar bem este post: mais água gelada, mais crianças, mais paisagens, mais pinturas, mais deste povo lindo: os Yawalapiti. Auire!

Alto Xingu, Aldeia Tuatuari, Etnia Yawalapiti
21 a 27/7/2017

Manuela adorava fazer selfie e dava muita risada quando via suas fotos.
Era uma farra a cada encontro

Makapalo é linda, muito esperta e estava sempre por perto. Reparei isso melhor quando vi as imagens em casa:
tenho fotos dela em diversas ocasiões. Esta eu fiz na porta da “nossa casa Yawalapiti”.






Fotos: Mônica Nunes

 

8 comentários em “Sete dias com os índios Yawalapiti

  • 9 de agosto de 2017 em 5:59 PM
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    Viver a vida um dia por vez!

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  • 11 de agosto de 2017 em 10:44 AM
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    Que narrativa arrebatadora, querida Mônica Nunes! Uma jornada adorável. Fiquei muiiiiiito curioso com o projeto de piscicultura. Deve ter um “pacote” de conhecimento sobre peixes pra lá de interessante. Amei o texto e as fotos, feitas sensivelmente com alma de jornalista. Obrigado por compartilhar. Beijo

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    • 12 de agosto de 2017 em 6:52 PM
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      Querido Sabino,
      Obrigada pela mensagem tão carinhosa. É uma delícia ter retorno de quem nos lê.
      Fico feliz que tenha gostado de tudo que contei, do meu jeito de contar e dos registros que fiz.

      Não tenho informações sobre o projeto de piscicultura, mas vou procurar saber e te conto.
      Obrigada!
      Beijo

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  • 1 de maio de 2018 em 12:59 AM
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    Que emoção, queria tanto eu ter essa vivência nem que pouca. Gratidão aos povos indígenas.

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.