Self da inexistência

O carrinho traz deitado um ser nascente disforme. Cheio de olhos, cerca-se de olhares. Empupilado na firme intenção de apreender quase tudo. E nessa ânsia não assimila quase nada. Guarda apenas uma solidão disfarçada pelos barulhos irritantes e condicionantes das mensagens repetitivas que não param de chegar. Vão avisando das novas promoções.

O bebê monstro nasceu na maternidade do consumo. Passeia entre gôndolas e corredores. No seu carrinho de supermercado vai captando e carregando marcas e embalagens que aguçam e angustiam. Troçam com desejos e defeitos. E iludem. E acham que enfeitam esse carrinho que se conserva entre corante e lixo. Pobres bichos engolindo nossas embalagens pelos mares. Pobres de nós também. Temos de conseguir seguir avante nessa obrigatoriedade de comprar? Estamos fadados  a procurar a ala certa para sempre?

O  que fazemos sem leite em pó, pão, feijão? E se essa ala certa ainda tivesse o mais certo, o melhor, o não nocivo, o menos envenenado que não  fizesse vislumbrar tão somente um futuro  carregado numa cadeira de rodas que circula indecisa pelo chão que enche. Enchente…

É tanta gente tentando, procurando, se debatendo em busca de mar com mais ar. Máscaras de falsidade, de verdade e de ôxigênio desistem de tentar esconder as incertezas e dissolvem-se no oceano que leva os anos, os panos e os insanos transformados em autômatos.

Eles, que não encontram mais ritmo nessa vida porque já não sabem como ouvir o que vem de lá de dentro, do centro. O tum-tum. Cor. Ação. Aquele que bate sem ninguém saber direito como. Bate porque bate. Um leva e traz contínuo, consequente. Um mexerico, esse sim importante, conhecido em cada vão do corpo, celebridade aquém epiderme, além febre de fama e espelho, germe narciso entre pulseiras de sedução e braceletes de guerra que refletem num mosaico espelhado as faces da dor de quem luta ou seduz ouvindo o movimento mecânico da máquina.

O metrônomo ganhou status, ocupou o espaço do coração de quem perdeu o embalo. A única coreografia possível é o rolar da tela. O ser só se mantém em pé sustentado por cintas para não encurvar, encurvar… Segue o caminho que outro descreve com o olho automatizado.

Melhor, quem sabe, seguir o olhar, a expressão, o não dito, o escrito no semblante. O que veio antes das pupilas de vidro, dos destinos à procura de pessoas que queiram viver a intrigante plenitude da vida, ainda que tenham que lutar por esse direito com a própria sombra. Lutar para sair, lutar para não querer permanecer mais na linha do templo virtual, do que na face real.

Combater essa satisfação viciante que pede pequenas doses constantes de curtidas, compartilhamentos. Mais um clique. Mais uma satisfação pública. Mais uma gota no espelho d’água em que vamos submergindo. Mais um momento intermediado pela tela. Menos um momento ao sabor do vento na janela.

Este post  foi inspirado na peça Autômatos – Self da INexistência, da Companhia Laica, peça de Fábio Nunes Medeiros, professor, artista, pesquisador. Junto com os alunos produziu as máscaras e outros objetos cênicos que fazem parte do espetáculo.


Fotos: divulgação/Juliana Luz

Um comentário em “Self da inexistência

  • 22 de maio de 2018 em 12:49 PM
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    Humanos priorizando o TER em desfavor do SER, redundam em humanóides, desconectados com a vida lá fora, com o verde, o vento, os ninhos, os passarinhos mas, principalmente, desligados de si próprios porque a prioridade é manter, para os seguidores famintos, a imagem que eles esperam ver da pessoa que não existe mais.

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.