São Francisco, um rio em risco

As estradas são de terra – vermelha como sangue. Uma depois da outra e logo se nota a corpulenta teia de caminhos onde porteiras fazem divisa com montanhas. Na Serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais, a força da natureza é uma expressão tão sólida quanto a rocha de quartzito que forma o seu solo, característico da era geológica Pré-Cambriana. A região abriga um verdadeiro berçário de nascentes.

São tantas as cabeceiras que os cientistas definem o lugar como sendo uma gigantesca caixa d’água. A principal é a do São Francisco – o rio mais emblemático do País. Nenhum outro é digno de tamanha devoção.  Não por menos é chamado de rio da integração nacional. A bacia hidrográfica possui área de 639 mil km² e percorre 507 municípios de sete unidades da federação. Vista de cima, mais parece uma veia aberta que se estende por 2.863 km do território brasileiro.

Há imensos paredões de rocha espalhados entre os maciços da Canastra e o da Serra das Sete Voltas com inúmeras cachoeiras, vegetação de árvores pequerruchas e animais como o tatu-canastra, a onça-parda, o lobo-guará e o veado-campeiro. Na parte alta do chapadão mais famoso, destacam-se a Cachoeira dos Rolinhos, o Curral de Pedras – utilizado no passado para conter o gado durante a noite – e a Garagem de Pedras, antigo entreposto para os habitantes do Vão dos Cândidos que subiam a chapada a pé ou no lombo de burro com o objetivo de acessar a estrada que liga São Roque de Minas ao Triângulo Mineiro.

Toda esta vastidão de biodiversidade ameaçada pela ação antrópica começa na atração turística mais visitada da Canastra, a Cachoeira Casca d’Anta. Com 186 metros de altitude, a queda que se forma da nascente histórica do Velho Chico está localizada a cerca de um quilômetro da primeira mancha de garimpo da região. Hoje, não passa de uma cicatriz no meio da mata, mas até 1996 era o ponto de partida da extração de diamante no Alto São Francisco. Toda a área junto ao rio possui falhas no solo e na vegetação. Ao seguir o curso das águas, cavidades recompostas pela natureza são como olhos atentos a quem passa. Pela estrada, as propriedades se espalham. A maioria pertence a moradores tradicionais. O povo residente vive da produção de queijo – base da economia local.

Placas de localização apontam a direção de pousadas. Algumas antigas, como a da Limeira. A cancela aberta é um convite para o forasteiro que, em poucos metros, alcança a casa sede, onde mora Whainne de Castro, um senhor de 60 anos, reservado até a hora de servir o café. Do primeiro gole em diante, dá ritmo à boa prosa. Sabe-se que a cozinha é a sala de estar do mineiro. Nela, as histórias passam de pai pra filho. Encostado ao lado da porta, Whainne fala do tempo em que a região era quase uma terra de ninguém. “Isso tudo aqui era garimpo. Na época em que meu avô comprou a fazenda, você podia pescar, caçar, passar trator de esteira na beira de rio, tirar cascalho, desmatar, fazer qualquer coisa”, comenta.

O neto de garimpeiro esclarece que, em meados do século vinte, o movimento era tão intenso que havia, pelo menos, cinco mil pessoas cadastradas garimpando na região. Outras centenas extraiam a pedra na ilegalidade. “Tinha uma espécie de cooperativa que tomava conta da operação. Enquanto teve cascalho aflorado na serra, só se pensou em diamante. Ainda tem bastante, mas com a proibição do garimpo, na década de noventa, as coisas começaram a mudar”.

Élzio Leonel da Costa conta de suas vivências durante a época do garimpo na Canastra

Não muito longe, a casa típica do interior abriga uma família cujo patriarca de 73 anos garimpou uma boa parte da vida. Élzio Leonel da Costa afirma que o trabalho era manual. “De primeiro se fazia tudo no braço. A gente cavava um tanque para depositar a água à noite. Jogava vinte carroças de cascalho e, de tarde, só apurava na peneira pra separar as pedras dos diamantes”.

As linhas eram todas marcadas na metragem. Cada um garimpava numa direção. O dono da fazenda deixava um encarregado que cuidava dos trâmites. “Aqui chegava garimpeiro de tudo que era lado. Aí a gente usava de meia praça. Era dar as ferramentas, a despesa do mês, arrumar um lugar pra pessoa morar e tudo que ela fazia partia de você. Uma gente que não tinha nenhuma prática de venda e aqui tinha muito comprador – os capangueiros”. As pedras circulavam pelo Brasil e exterior. Saiam da Canastra para o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. “O comércio era clandestino, 99% dos diamantes saiam daqui de forma ilegal”, relata Costa.

Mudança de curso

Whainne é um dos precursores do ecoturismo na Canastra. “Meu avô pegou uma mancha no garimpo do Guiné, perto de Capinópolis, conseguiu umas pedras e comprou estas terras. O turismo era o caminho, mas a verdade é que ninguém dava a mínima para o meio ambiente. O negócio era derrubar, arrancar cascalho e vender diamante”.

Vinte anos depois do encerramento das atividades, os esportes ao ar livre se tornaram frequentes. Modalidades como escalada, trekking, mountain bike e rapel são praticadas na região por adeptos que chegam de diversas partes. “O rio mudou muito. Hoje, você vê a água limpa. Naquela época, era suja, barrenta. Tinha lama pra tudo quanto era lado. As beiradas estavam sempre entupidas de cascalho. Os peixes sumiram por muito tempo. A consciência ecológica veio depois. Terra devastada não atrai ninguém. Tem que cuidar pra chamar a atenção das pessoas”.

Os impactos sobre o rio São Francisco são muitos desde as nascentes. As demandas urbana e industrial na região do Alto São Francisco se relacionam sobretudo com a siderurgia, mineração, química, têxtil e papel. Indústrias e unidades habitacionais lançam indiscriminadamente efluentes nas calhas do São Francisco e de seus afluentes. Na Canastra, a prática da pecuária extensiva e os incêndios criminosos agravam a situação. “Muitos fazendeiros não sabem manejar o seu gado; poucos cercaram as nascentes de suas propriedades; os córregos recebem dejetos de esgoto; muita gente ateia fogo de propósito no parque como retaliação pelo que fizeram quando o criaram; um caos”, afirma Whainne.

Comunidades de pesca ribeirinhas têm cada vez mais dificuldade de viver do rio

Para o biólogo Rafael Melo, idealizador do Projeto Peixes de Água Doce, do Instituto de Estudos Pró-Cidadania, o desmatamento ciliar e a construção sucessiva de barragens são causas graves de degradação. “O primeiro leva ao assoreamento do rio, diminuindo a riqueza e diversidade de espécies animais e vegetais, e o segundo altera a dinâmica das águas, impedindo a migração e reprodução de peixes de piracema, que são os de maior porte corporal e, consequentemente, importância comercial para as populações locais”, comenta. O São Francisco possui nove hidrelétricas, como as de Três Marias, em Minas Gerais, e Sobradinho, na Bahia. No território das águas, como também é conhecida a Canastra, o desmatamento mudou a paisagem de maneira representativa.

Segundo o analista ambiental Fernando Tizianel, chefe do Parque Nacional da Serra da Canastra, os chapadões da Canastra e da Babilônia são um grande remanescente de campo de Cerrado limpo, cada vez mais raro na América Latina. “O propósito da Unidade de Conservação é o de preservar este oásis natural, que serve de habitat para mil espécies de plantas e centenas de animais”, relata. A área de proteção integral conta com 354 espécies de aves e 38 de mamíferos. Várias endêmicas e muitas em risco de extinção.

O parque foi criado em 1972 pelo decreto nº 70.355 com área de 200 mil hectares. Do total, apenas 71 mil possui situação fundiária regularizada. O processo de desapropriação foi feito de forma truculenta pelos militares. As pessoas foram retiradas à força das terras, muitas não receberam o valor devido por elas, o que gerou ressentimento da população com o órgão gestor.  O conflito dura mais de 40 anos. “Muitos pensam que o parque será ampliado de 71 para 200 mil. Não. Estamos consolidando a área total de acordo com a lei”, explica Tizianel.

Conflito pela terra

Na área não regularizada, que corresponde a 130 mil hectares, vivem famílias geracionais de fazendeiros. Grande parte, composta por pequenos agricultores. “Se forem reconhecidas como sendo população tradicional, permanecerão, por direito, na terra. Do contrário, em algum momento, terão que sair”, conta Tizianel. Eis um grande ponto de interrogação para a comunidade que habita a serra e tira dela o seu sustento. O produtor de queijo Nivaldo Pereira Rosa, de 73 anos, o Vadinho, tem a propriedade situada no Vale dos Cândidos, dentro da área não regularizada. “A minha vida é este pedaço de chão. Eu me criei na fazenda, casei e eduquei os meus filhos nestas terras. Se me tirarem daqui, não vou aguentar de tristeza”, afirma. Ele é um dos últimos carreiros da Canastra. O carro de boi é parte viva da história e dos costumes regionais.

Nivaldo Pereira Rosa, de 73 anos, o Vadinho, em momento de descontração durante o almoço

Tizianel reitera que há uma falta de clareza dos proprietários sobre a situação fundiária atual. “O processo, hoje, desenrola de forma legal, ou seja, todos serão devidamente indenizados, o pagamento será realizado de acordo com os valores de mercado, ninguém será expulso das terras nem tampouco desapropriado sem que se cumpram as etapas previstas na lei.” A equação é ainda mais complexa, pois de um lado está a necessidade de conservação da natureza, e do outro, a importância de manutenção da cultura popular. Os moradores questionam a atuação do Governo em todas as suas instâncias. “O problema aqui é a falta de incentivo governamental. Só a iniciativa privada e as ONGs fazem alguma coisa pela região. O Governo se limita a decretar lei, ponto”, comenta Whainne. O chefe do parque rebate. “Estou tentando abrir uma porta para o diálogo. É difícil você quebrar algo que já solidificou na cabeça das pessoas, mas ainda acredito que é possível”.

O conflito gera um ruído na comunicação entre as partes, impossibilitando um desfecho efetivo para a preservação dos mananciais. Miguel Farinasso, analista de desenvolvimento regional da Codevasf, esclarece que uma solução seria a promoção de programas de capacitação dos moradores e produção de projetos de revitalização dos afluentes da Bacia do São Francisco, como o combate ao desmatamento e a recuperação de nascentes. “Não dá para ficar somente esperando a água da chuva, que – com o solo impermeável por conta do desmatamento – cai e não infiltra, não reabastece o lençol freático. É preciso recuperar as nascentes e os afluentes para que o volume do São Francisco seja aumentado”, observa.

São décadas de destruição das margens, substituição da vegetação nativa pela monocultura e derrubada da cobertura vegetal para a abertura de pastagens. O uso indevido do solo causou impactos que refletiram no assoreamento do rio. A construção sucessiva de hidrelétricas interrompeu o ciclo de inundação do São Francisco. Toda esta alteração na dinâmica das águas gera a diminuição da quantidade de peixes, realidade que atinge diretamente as comunidades que dependem da pesca para se manter. “É uma situação crítica. Mesmo que o rio nunca deixe de correr, ele pode vir a existir com péssima qualidade. Há muita expectativa em cima dele, mas pouco cuidado”, diz Tizianel.

Acúmulo de contradições

De São Roque de Minas, chega-se facilmente aos atrativos mais conhecidos da região. O município incrustado na montanha faz lembrar um presépio. Praças arborizadas separam ruas e avenidas sem semáforo. O burburinho nas janelas traz para as calçadas uma atmosfera familiar – que acolhe o transeunte. Na praça principal, a Matriz marca um ponto de encontro dos sete mil moradores divididos entre as zonas rural e urbana. Cerca de 50 quilômetros separam a cidade, onde se situa a nascente histórica, do Cânion São Leão, local de encontro das águas do Velho Chico com o rio Samburá, considerado o abrigo da nascente geográfica do São Francisco.

Wilton Darque Pereira joga a rede em saída de pesca na fronteira entre o São Francisco e Samburá

Uma ponte define a fronteira. Logo abaixo, na margem direita, avistam-se os barracões. A comunidade de pescadores conta com 50 integrantes. Todos, associados da Colônia Z-06, de Formiga. Wilton Darque Pereira, um dos pescadores mais antigos de São Leão, comenta que se não fosse o barzinho que mantém há mais de década ali, passaria aperto. “Eu moro há 25 anos aqui e consegui formar um filho meu na federal dependendo do rio. Se fosse pra tratar do menino agora, deste rio já não tirava nem a metade do necessário”.

Onde antes ele pescava 15 quilos por dia, hoje não puxa nem quatro. Eram mais de 60 espécies, sendo que as de maior valor comercial ainda são curimba, mandi, piau, surubim e dourado. “Eu acho que o maior problema é o desmatamento das beiradas. Tiram muito mato pra poder plantar. Eles botam veneno lá em cima e o ‘trem’ chega cá em baixo, mata tudo quanto é peixe”, afirma.

O avanço da atividade agrícola, com plantações de soja e café no Cerrado, afetam a qualidade da água do São Francisco, causando a mortandade de peixes. Melo explica que as poluições hídricas mais agressivas, como despejo de esgoto urbano e agroindustrial, estão associadas à densidade populacional. “Quanto mais gente tiver em determinado ponto geográfico, maior será a gravidade da poluição e menor a qualidade e diversidade do habitat aquático”. A maior concentração demográfica da bacia do São Francisco está no Alto – 57% dos habitantes vive na região.

Outro impacto grave é a pesca predatória. O número de pescadores ilegais que entram no rio, principalmente na época da piracema, é maior que o de fiscais. “A gente faz campanha pra soltar alevino nas águas de uma a duas vezes por ano. Em 2016, foram 30 mil alevinos. Mas o povo precisa se conscientizar pra não pegar eles pequenos. Tem que esperar uns cinco anos. A fiscalização bate, mas não adianta”, relata seu Wilton.

Água linda
Existem programas pontuais que auxiliam na avaliação da qualidade da água, como o desenvolvido pela ONG Terra Brasilis. O biólogo de campo Wellington Geraldo Viana esclarece que o projeto Pato Mergulhão – promovido há 15 anos – faz do São Francisco o seu laboratório. “O pato ocorre em toda área do parque, mas como reside nas beiras do rio qualquer impacto gera a perda de seu habitat”, diz. Esta espécie de ave está gravemente ameaçada de extinção. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), a população global do pato está estimada em 250. A Canastra concentra a maior, com cerca de 140 indivíduos. O pato mergulhão é um termômetro para pesquisadores por ser uma espécie extremamente exigente quanto à limpeza da água.

Casal de patos mergulhão em trecho preservado da bacia hidrográfica, na Serra da Canastra

Um dos eixos do projeto visa à conscientização dos produtores rurais de que, aos poucos, aprendem a manejar o meio. Entre as informações trabalhadas estão a preservação das nascentes e matas de galeria e ciliares que se localizam dentro das propriedades. Com esta ação, as nascentes se mantêm e, consequentemente, o habitat do pato. “O nosso trabalho começa a surtir efeito. Há produtores que já entenderam o quão importante é cercar as nascentes. Em período de seca, por exemplo, os que não o fazem, notam que vizinhos que fazem conseguem manter as nascentes jorrando. O boca a boca acabou gerando reflexão. Muitos inclusive trabalham com o reflorestamento de áreas próximas às nascentes e beiradas de rio”.

A iniciativa deveria ser preventiva da nascente à foz – recuperação das nascentes, tratamento de esgoto e resíduos que são lançados no curso principal e afluentes, reavaliação do sistema de barramento do rio. Existe um conjunto que precisa ser repensado para que o São Francisco continue vivo. O que se vê, entretanto, é exatamente o contrário. Em termos quantitativos, pode-se estimar que a ação antrópica já atingia, em meados da década de oitenta, 25% da área da bacia. Os projetos deveriam se multiplicar por toda a extensão do rio, mas a falta de incentivo e criação de políticas públicas de proteção revela negligência por parte do Estado.

Os especialistas entrevistados preferem não fazer previsões, mas a maior autoridade nas questões que envolvem o São Francisco, José Theodomiro de Araújo, morto em 2003, concluiu o seu prólogo de seis páginas no livro Velho Chico, Uma Viagem Pictórica, com o seguinte trecho: “Está enfraquecido o Velho Chico, e agoniza, jurado de morte que foi pela ganância e pela inconsciência dos seus próprios filhos. E, quando ele morrer, no lugar onde hoje é a Cachoeira Casca d’Anta, nós, que o amamos, faremos fixar no paredão da serra o epitáfio: Por aqui passou um rio que foi destruído por um povo que usou a inteligência para praticar a burrice”. Mudar o curso desta história ainda é possível. Só depende de nós.

Véu e poço da Casca d’Anta, a primeira queda do São Francisco

Fotos: Fellipe Abreu

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Carolina Pinheiro

Jornalista e documentarista, colabora com importantes publicações nacionais e internacionais. Viaja o Brasil atrás das histórias do povo, de cantos que não constam no mapa, de lugares distantes das principais rodovias. Traz a reportagem na veia. Em 2014, fundou a Nascente Casa Editorial, onde trabalha com a produção de conteúdo sobre cultura popular, meio ambiente e turismo sustentável no país.