Quem vê quem?
Quem olha quem nesses dias de correria pouco olímpica, instigada pela malemolência encaixotada, controlada e, acreditamos, sem opção da cidade grande? Desde que as revoluções industrial e francesa transformaram a estrutura de produção, fomos reduzidos a peças de observação, com potencial de consumo. Da nossa janela, pensamos observar a multidão. Mas há tempos não passamos de peças de um jogo, capturadas pelas vitrines iluminadas e calculadas para atrair a visão. Fomos engolidos… Cooptados.
O homem na janela, pintado pelo francês Gustave Caillebotte (1848-1894) nos diz que janelas são para olhar para fora? Vitrines são para olhar para dentro? Certeza? E o que fazem nossos vizinhos do prédio da frente? E a visão tomada por uma parede de concreto? Que vantagem olhar para fora… E os vendedores que nos olham, medindo visual e tentando adivinhar classe social antes que possamos por o pé na loja?
Quem captura quem? A telinha do celular, essa minivitrine que permite a prisão de bichinhos sem graça, nos torna agora zumbis desagradáveis e incomunicáveis. Que estratégia de marketing é essa desse aplicativo que faz usuários seguirem cegos em suas caçadas obtusas rumo a cemitérios? É para provocar polêmica mesmo, suponho. Prefiro uma caminhada, ainda que conturbada, na Spuistraat, pintada pelo holandês Floris Arntzenius (1864-1925), em vez de me antecipar e me enterrar na inexistência, antes mesmo de precisar do túmulo padrão.
Estamos ao ar livre, mas permanecemos conectados e nos contentamos com a janelinha claustrofóbica para nos entreter… Quanta vantagem essa da interatividade “virtual-real”!
Tenho uma sugestão: já que tem Pokémon em museu, vamos mudar as regras do jogo. Só caça o fulaninho quem permanecer três minutos olhando um quadro e prestando atenção na explicação do monitor (pessoa, não o da tela do computador, seu aficionado digital, passageiro da evolução corcunda). Homo corcundus sentados no metrô, no ônibus, sem precisar ter vergonha de olhar para o passageiro da frente porque o celular garante o muro da invisibilidade latente na viagem.
Não passamos hoje o que passaram os ocupantes desse vagão de terceira classe, pintado pelo francês Honoré Daumier (1808 -1879). Quando surgiu o trem, não era comum para os cidadãos compartilharem o mesmo espaço com desconhecidos. O ponto de fuga era a janela para espiar a paisagem e desviar o olhar. Difícil sustentar a incômoda situação de ter que se olhar, sem entabular conversa. Embora, naquela época, tenho a impressão que deveria ser mais fácil um: será que chove? Hoje, até o fone sair do ouvido, o olho sair do visor, a hora de saltar já chegou.
Sair do coletivo, direto para casa para acabar como personagens solitários anunciados pela pintura com essa aparência silenciosa do americano Edward Hopper (1882-1967).
É tanta solidão que é preciso fazer o burburinho da rua entrar pela janela para encobrir a barulheira e bagunça interna, disfarçada pela falta de conversa. É uma tela do pintor italiano Umberto Boccioni (1882-1916), na imagem que abre este post. O ruído invadindo a casa para deixar claro que só há silêncio possível quando o ser consegue se apaziguar por conta própria. Uma meditação no caos, uma consciência da desordem: quem sabe seja esse o caminho para andar nessa civilização que insiste em nos transformar em robôs.
*Quero agradecer ao Paulo Henrique Tôrres Valgas, da UDESC, que com seu trabalho “A modernidade em Walter Benjamin e outros: percepções por entre janelas e vitrines” me instigou a escrever esse post. A maioria das obras que você vê aqui estão no artigo dele. Os próximos posts também podem ser inspirados por mais trabalhos do pessoal das universidades. É que assisti ao Simpósio Temático “Arte e Partilha do Sensível”, que integrou o XV Encontro Regional de História – ANPUH-PR. Tem muita pesquisa bacana sendo feita. Material que precisa e merece ser mostrado.
Fotos: 1. O homem na janela, de Gustave Caillebotte; 2. Vista da Spuistraast , de Floris Arntzenius; 3. Vagão de terceira classe, de Honoré Daumier; 4. O ruído da rua entra em casa, de Umberto Boccioni; 5. Janela do hotel, de Edward Hopper
Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.
Bacana! Gostei da abordagem sobre a solidão no meio de tanto barulho..Não conseguimos mais ficar sozinhos e paradoxalmente estamos mais sozinhos do que nunca. Abs,