Por uma infância com mais liberdade (e riscos), descobertas e conexões

Por uma infância com mais liberdade (e riscos), descobertas e conexões

Numa sociedade cada vez mais superprotetora, as crianças têm cada vez menos liberdade e deixaram de brincar ao ar livre. Não caminham sozinhas pelo bairro, não andam de bicicleta e nem conhecem os vizinhos. Vivem hoje uma infância controlada e agendada pelos pais. “Deixamos de acreditar no potencial das crianças e não conseguimos mais reconhecer que elas podem aprender sozinhas, através de suas descobertas e experiências”, afirma Tim Gill, um dos maiores especialistas britânicos sobre infância.

tim-gill-conexao-planetaFormado em Filosofia e Psicologia, ele defende que precisamos repensar a infância. Ao longo dos últimos 20 anos, Gill fez pesquisas, escreveu artigos e livros (“Sem Medo – Crescer numa sociedade com aversão ao risco”, traduzido para o Português) e foi consultor em projetos de planejamento urbano para tornar cidades locais mais seguros e “amigáveis” para as crianças.

Ao dar palestras em países da Europa, América do Norte, Japão, Ásia e Austrália, o especialista sempre enfatiza a ideia de que ao darmos menos liberdade para nossos filhos, eles perdem a conexão com o mundo do lado de fora, com os outros e o planeta.

Em entrevista exclusiva ao Conexão Planeta, Tim Gill falou mais sobre sua visão da infância, o impacto da tecnologia sobre ela e como é essencial que pais e educadores dêem um passo atrás e voltem a acreditar e confiar nas crianças.

Como sociedade e pais, o que estamos fazendo de errado?
Acho que a vida das crianças foi transformada em uma espécie de efeito colateral do nosso modo de vida moderno. Muito mudou ao longo do tempo e não demos atenção ao impacto destas mudanças na infância. Um destes impactos é muito claro, que ao redor do mundo, as crianças brincam menos ao ar livre, passam mais tempo sentadas na frente de telas, perdendo a chance de explorar o bairro onde estão crescendo ou encontrar os amigos. Temos mais medo do que pode acontecer com as crianças, nos preocupamos com os riscos. Não há um culpado só pelo que está acontecendo, mas existe uma série de fatores, que fazem com que as crianças tenham menos liberdade, percam a conexão com o mundo do lado de fora e sejam mais medrosas.

Por que o senhor acha que perdemos a confiança nas crianças?
Deixamos de acreditar no potencial delas. Não conseguimos enxergar mais o que elas conseguem fazer, como podem aprender através das próprias experiências. Cada vez mais, pensamos que temos que proteger nossos filhos, que precisamos ensinar tudo a eles. Não conseguimos mais reconhecer o que as crianças podem aprender sozinhas.

Nas últimas décadas, a população mundial migrou para centros urbanos. Como isso afetou a infância das novas gerações?
Esta é uma boa pergunta. Acho que não há nada de errado em viver numa cidade, ela pode ser um lugar bom para  uma criança crescer, mas ela precisa ter liberdade para conhecer e explorar a cidade e ter contato com natureza. E obviamente, a cidade tem quer ser um lugar seguro e saudável. Então é horrível se a criança mora numa cidade com poluição, superpopulosa, sem saneamento, ou seja, o básico, que é de consenso geral. Mas é possível ter cidades com o básico e também bons parques, ruas seguras, onde as crianças podem caminhar e andar de bicicleta.

Na sua opinião, qual o impacto do trânsito na vida das crianças?
Em meu trabalho, tenho grande interesse em estudar como as crianças se locomovem nos bairros. E para mim, o trânsito é a principal barreira para que elas possam andar de bicicleta ou andar sozinhas com os amigos. Nos últimos 100 anos, eu diria, o crescimento dos carros foi paralelo ao declínio da infância ao ar livre. É algo bem complicado e isto é somente uma parte da história.

Mas como nós, cidadãos de uma cidade grande, podemos fazer alguma coisa para mudar esta realidade? Dependemos exclusivamente de governos?
Sim, como cidadãos, podemos agir, mas não conseguiremos resolver tudo. Como pais, precisamos reconhecer – e nos lembrar – , da importância das crianças brincarem livremente, do lado de fora de casa, de andar de bicicleta no bairro. E se nos dermos conta que o bairro não é seguro, temos que reivindicar mudanças. O principal foco do meu trabalho não é nos pais, mas em professores, planejadores urbanos, tomadores de decisão, tentando fazer com que estas pessoas pensem mais na vida das crianças, mas é lógico, preciso saber que os pais concordam comigo. Porque se os pais não pedirem mudanças, os políticos vão simplesmente nos ignorar.

Há algum exemplo prático de como pais podem se unir e obter resultados reais?
Aqui na Inglaterra, há um movimento chamado Playing Out (Brincando lá fora, em tradução livre). Juntos, pais organizam o fechamento temporário de ruas com a administração municipal. Durante algumas horas por semana, as crianças brincam na rua onde moram. É um bom exemplo de como os pais podem fazer diferença. Lógico, que é necessário haver o apoio da cidade para permitir que algo assim aconteça. Mas, tenho que admitir, que não é fácil. Prefeituras, escolas e sociedade têm que ajudar os pais a criar mais oportunidades para que as crianças brinquem ao ar livre.

E como o estilo de vida das famílias modernas afeta a maneira como as crianças são educadas?
Hoje os pais trabalham muito mais do que no passado. E existe uma lógica, que tem sido reforçada há algum tempo, que pais bons são aqueles controladores. No passado, a sociedade não tinha um foco tão grande em perigo e risco. As mídias sociais também não ajudam muito. Os pais têm medo que, caso seu filho faça alguma coisa errada, se meta num briga ou sofra um acidente, rapidamente, todo mundo no Facebook estará sabendo. Então, os pais se sentem vivendo sob um microscópio!, algo que não existia há 10 ou 20 anos. E no topo de tudo, acho que o espírito de solidariedade do bairro, que as pessoas costumavam ter, não existe mais, assim as famílias se sentem mais isoladas. Muitos pais possuem muitos amigos e conexões, mas “online”. E isso não os ajuda na vida real com seus filhos porque não há troca de informações sobre a rua, o parque do bairro, a interação entre as crianças. O olho no olho faz toda a diferença.

Qual deve ser o papel da escola para fazer com que as crianças passem mais tempo ao ar livre?
Esta é uma boa pergunta também. Acho que há duas perguntas separadas aí. O que as escolas pensam sobre aulas ao ar livre, ou melhor, vendo o ar livre como uma aula, e a segunda é simplesmente sobre crianças brincarem fora de quatro paredes, dando a elas mais oportunidades e melhores escolhas. Porque todas as crianças vão ter um horário na escola quando estarão simplesmente brincando. Sobre o aprender ao ar livre, acredito que há um movimento mundial, que cresce exponencialmente, sobre o valor das crianças experimentarem e aprenderem ao ar livre, sobretudo, aquelas que têm dificuldades dentro da sala de aula e conseguem responder de maneira muito melhor em outro ambiente. É possível ensinar qualquer coisa ao ar livre: Português, Matemática ou História. A mensagem aos professores é tentem e busquem material e exemplos, pois há muitos educadores que já estão fazendo isso de maneira muito bem sucedida.

E como tranformar a hora do recreio em uma experiência com mais qualidade?
Em muitas escolas aqui na Inglaterra e imagino que no Brasil também, o recreio é um momento de dor de cabeça para a administração. É um problema porque os estudantes ficam fora de controle, não há nada para eles fazerem ou então, eles só jogam futebol e trombam uns nos outros. Acho que é preciso oferecer opções mais ricas aos alunos. Isso pode incluir desde a mudança do design da área externa até trazer diferentes elementos para as crianças brincarem. Não estou falando de brinquedos, mas algo que se assemelhe ao conceito do sótão ou da garagem da casa da avó, onde há elementos soltos, como caixas de papelão, pedaços de madeira, pneus, cones de trânsito. O objetivo é que as crianças brinquem com estas coisas e tenham uma experiência rica, cheia de descobertas. E sobre os adultos que supervisionam esse horário livre, eles devem dar um passo para trás e não interferir ao primeiro sinal de algum incidente. Há muitas ideias, que podem ser diversas em diferentes lugares do mundo, mas o primeiro passo é reconhecer a importância deste momento ao ar livre para as crianças brincarem livremente.

Como a tecnologia está mudando a infância? Ainda estamos aprendendo a usá-la?
Todos nós ainda estamos aprendendo a lidar com a tecnologia. É bastante difícil porque ninguém sabe quais são as regras e as respostas. Ela trouxe uma mudança na nossa vida de maneira muito rápida e profunda. Há muitas pesquisas, preocupação e medo. Mas a tecnologia não irá embora. Precisamos aceitar que ela fará parte da vida de nossos filhos, assim como é parte de nossas vidas agora. Eu e você estamos conversando agora pelo Skype. Para mim, você e muitos outros adultos, tecnologia é absolutamente essencial para nosso trabalho. Precisamos é encontrar uma maneira de tornar o mundo real mais atraente para as crianças. Um dos motivos que elas são atraídas pela tecnologia, por exemplo, é porque querem ver os amigos. Mas se elas não podem encontrar os amigos de verdade, porque não podem ir sozinhas até a casa deles ou no parque, vão para o Spachchat ou WhatsApp. Parte do que nós, adultos, temos que fazer é revalorizar o papel dos vizinhos, do bairro, parques e playgrounds.

A tecnologia também pode ser usada para levar as crianças para fora de casa?
Sim, acho que é possível criar jogos e aplicativos que atraiam as crianças para o ar livre. Um pequeno exemplo foi o que aconteceu com o Pokemon Go. É um caso interessante. Mostra que talvez, pessoas inteligentes consigam encontrar maneiras inteligentes para usar tecnologia para reconectar as crianças com a natureza. Acho que deve haver formas mais espertas de lidar com a tecnologia do que simplesmente aquelas em que os pais dizem “largue este telefone, não use o Ipad”. Acho que isso não funciona.

Por que o senhor diz que o “horizonte das crianças encolheu”?
Quero dizer que – literalmente -, a criança de hoje tem menos liberdade do que as de gerações anteriores. Temos estudos que comprovam isso. Quando eu tinha 8 anos, caminhava cerca de dois, três quilômetros no meu bairro. Mas atualmente, uma criança de 8 anos, em muitas cidades, não pode nem sair na porta de sua casa. Então toda a “área territorial” das crianças tem encolhido nas últimas gerações. E este fenômeno está acontecendo no mundo inteiro, não somente em países ricos, mas em economias mais pobres também.

E como isso influencia o crescimento destas crianças?
Todos queremos que nossos filhos cresçam seguros, capazes e responsáveis. E conectados com o mundo: com o bairro onde moram, a cidade onde vivem e o planeta. Mas as crianças fazem parte destas conexões através de suas explorações, experiências e descobertas pessoais. Mas se negamos a elas estas experiências, não haverá conexões.

Se há menos conexões, que tipo de crianças elas se tornarão?
O que os psicólogos dizem é que vemos um número maior de crianças com medo. Que crescem inseguras. Também há mais egoísmo, narcisismo. Elas não estão tão abertas à opinião dos outros. Para mim, a causa mais plausível deste comportamento é que não estamos dando a liberdade para que elas sintam o que é ser uma pessoa responsável, para descobrir quem realmente são e fazer conexões com outros porque há sempre um adulto por perto, que está resolvendo os problemas por elas, protegendo de situações difíceis. É um cenário assustador.

E o que acontecerá no futuro quando estas crianças virarem adultos?
Se as privarmos cada vez mais das oportunidades de se tornarem responsáveis, aprenderem com seus erros e conquistarem sua própria segurança, elas crescerão e serão pais com medo, negando a seus filhos a liberdade para aprender e crescer, e aí teremos um ciclo vicioso. Por isso, acho importante não falar somente com pais, mas com a sociedade toda para saber como fazer com que tenhamos cidades mais amigáveis para a infância.

Mas como é possível pedir aos pais que dêem mais liberdade a seus filhos, quando se vive numa cidade violenta como São Paulo ou Rio de Janeiro?
É realmente difícil. Acabei de voltar de Bogotã e estava falando sobre isso com alguns pais. E eles me disseram que têm muito medo de crimes, drogas, bullying e que os bairros onde moram não são seguros para crianças. Neste caso, é preciso ter apoio político. Sei que não é fácil, mas a comunidade tem que se unir e dizer ao governo “isso não é suficiente, nosso bairro não é seguro!” Não há como fazer algo sozinho. É óbvio que um pai não vai deixar o filho andar num bairro onde há gangues, violência. Outra coisa que os pais podem fazer é agir de forma positiva no próprio bairro. Talvez tornar o parque local mais atraente?

O senhor acredita que “as crianças podem ser mais resilientes, responsáveis, capazes e criativas do que achamos”. Por que deixamos de acreditar no potencial de nossos filhos?
Por que perdemos a confiança nas crianças? Eu voltaria ao começo de nossa conversa e diria que isso é um efeito colateral das grandes mudanças da vida moderna. Especialmente em cidades, temos mais medo. Não temos conexões com as pessoas que moram próximo. A mídia nos fala o tempo todo que o mundo é um lugar perigoso – mesmo que isso não seja verdade, já que em muitas cidades dos Estados Unidos e Europa, hoje haja mais segurança do que no passado. Mas você não le isso no jornal. Olhamos para fora da porta de nossa casa e vemos uma realidade que parece mais assustadora e nos preocupamos por nossas crianças. Então é mais difícil do que costumava ser simplesmente dizer “acho que meu filho estará bem”.

Há esperança para mudança neste cenário?
Sim. O que  me encoraja é ver mais e mais pais dizendo “nós não estamos ajudando nossos filhos ao termos medo e acreditamos que nossos filhos têm capacidade de ser resilientes e livres ”. Há um movimento chamado Free Range Kids (algo como Crianças com Liberdade) nos Estados Unidos, também existe uma crescente procura por Escolas da Floresta, em que as crianças têm a floresta como sala de aula. Acho que estes são sinais positivos de um movimento emergente de reapropriação da infância, então estou mais otimista de que podemos reencontrar o caminho certo.

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Foto: domínio público/pixabay

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Suzana Camargo

Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.