Paz no Oriente Médio, graças à sabedoria das Corujas

O cientista político Bruce Hemmer renomado especialista na área da promoção da paz e da democracia, afirmou em seu artigo Putting the “Up” in Bottom-up Peacebuilding: Broadening the Concept of Peace Negotiations, o seguinte:

“A estrada para um primeiro diálogo entre povos em guerra é longa e repleta de obstáculos, o que requer interações em todos os níveis da sociedade. Tratados e resoluções assinados por políticos podem ter pouco ou nenhum efeito se os cidadãos não estiverem preparados para a paz. Da mesma forma, líderes políticos de países em conflito podem dar início à negociações pela paz se seus cidadãos já tiverem tomado a iniciativa de reestabelecer diálogo com seus ‘adversários'”.

O belo sorriso, na foto que ilustra este texto, é do fazendeiro jordaniano de Sde Eliyahu, área rural de Israel, já as penas brancas pertencem à linda Coruja-das-torres (Tyto alba no Velho mundo e Tyto furcata no Novo Mundo).

Você pode se surpreender mas, estes dois amigos são personagens de uma das histórias de maior sucesso, em todo mundo, sobre a promoção da paz e a reconciliação entre povos em guerra.

Essa história começa em 1982, quando nosso protagonista, Yossi Leshem, pesquisador dedicado ao estudo das aves – a quem eu viria a conhecer e de quem me tornaria amigo e admirador em 2010 -, foi presenteado pelo já superlotado setor de aves do zoológico da Universidade de Tel Aviv, com 15 Corujas-das-torres.

Leshem decidiu encontrar uma forma de devolver as aves à liberdade mas, para isso, precisava buscar um local seguro e uma forma de promover a convivência benéfica entre aves e seres humanos, especialmente porque, estas belas corujas brancas são, na verdade, consideradas como símbolos e portadoras de mau presságio para dezenas de povos que habitam o Oriente Médio.

Foi, então, que Leshem vislumbrou um fato que o levaria de uma luta pessoal pela libertação de um pequeno grupo de corujas para um projeto tão revolucionário que, em pouco tempo, uniria árabes e Israelenses em torno de um objetivo comum. Ele percebeu que os povos daquela região tinham um inimigo muito mais temido que qualquer outra criatura na face da Terra. Um ser capaz de despertar, ao mesmo tempo, medo e desprezo no coração dos homens. Uma criatura que, curiosamente, com o auxílio da Coruja-das-torres poderia ser exterminada: o rato.

Nessa época, as fazendas da região do Vale de Hula, região agrícola no Norte de Israel, encontravam-se infestadas por milhares de ratazanas e, em uma tentativa mal sucedida de minimizar o prejuízo de suas lavouras, os fazendeiros locais administravam altas doses do veneno de rato, conhecido como Composto 1080 (fluoroacetato de sódio ou, monofluoracetato de sódio).

Tratava-se de um raticida extremamente potente, ainda utilizado no Brasil (um dos líderes no uso desse venenos) e banido há décadas dos Estados Unidos devido aos efeitos tóxicos e às mortes causadas em centenas de ursos, falcões e águias.

amir ezer

Aquele poderia ser o local perfeito para o projeto de um ambientalista decidido a integrar fazendeiros e corujas. Mas, naquele mesmo ano, o fazendeiro com quem Leshem havia planejado desenvolver uma parceria para iniciar o projeto foi convocado pelo exército Israelense para lutar na guerra contra o Líbano, assim como o próprio Leshem.

O fazendeiro morreu durante combate e Leshem, que voltou ileso, teve que buscar novas parcerias em sua região, Sde Eliyahu, no Vale Beit Shean, ao Sul de Israel.

Hoje, após algumas décadas e dezenas de conflitos armados nessa região, o projeto do ornitólogo Yoshi Leshem – Aves Migratórias Não Conhecem Fronteiras – voou, segundo ele, para muito, muito além de suas próprias expectativas. Se espalhou não apenas pelos territórios israelenses mas, também, pelos territórios palestinos e jordanianos, impulsionando parcerias e amizades duradouras, entre cientistas e fazendeiros árabes e Israelenses.

Mas como funciona o projeto?

Os fazendeiros que aderem a ele recebem em suas propriedades caixas-ninho, caixas de madeira especialmente desenhadas para serem escolhidas como berçário, especificamente por Corujas-das-torres (Tyto alba). Enquanto que, propriedades rurais que não registram mais a ocorrência dessa espécie recebem novos casais para soltura, provenientes de órgãos e agências governamentais que atuam no resgate e na apreensão de animais silvestres.

Impulsionados pelo fato de que um único casal da espécie é capaz de consumir anualmente, em média, entre 4 mil e 6 mil roedores, os proprietários de terra assumem a responsabilidade de zelar pela manutenção das condições mínimas para a sobrevivência e o estabelecimento das corujas. E colaboram para a coleta contínua de dados sobre a ecologia e biologia dessas aves, encaminhando-os para os pesquisadores que coordenam o projeto.

Em uma conversa informal com Leshem, durante a produção deste texto, questionei-o sobre o principal motivo do sucesso de seu projeto, que vai além da conservação das aves e do controle de pragas, já que colabora para a reconciliação de pessoas, cidadãos de nações expostas a conflitos por milênios. E Leshem, também pesquisador da Universidade de Tel Aviv, respondeu:

“As aves têm um super poder, que é o de unir as pessoas, simplesmente porque elas não conhecem fronteiras”.

E foi seguindo o exemplo dado pelas aves que, em 2002, Leshem estabeleceu uma parceria com Abu Rashid, general aposentado do exército da Jordânia e, em 2008 com Imad Atrash, diretor da Sociedade para a Conservação da Vida Selvagem da Palestina. Em seguida, o grupo de cientistas captou recursos da Agência Internacional de Desenvolvimento da União Européia para expandir, ainda mais, seu projeto para além das “fronteiras” do Oriente Médio.

Barn_Owl,_Manchester_area,_UK,_by_Andy_Chilton_2016-07-06_(Unsplash)

O envolvimento de outros países no programa desenvolvido por Leshem foi essencial, pois, como ele mesmo sempre afirma, as aves não conhecem fronteiras. De acordo com estudo publicado pelo ecólogo Motti Charter da Universidade de Haifa, em Israel, as Corujas-das-torres podem percorrer, em uma única noite, entre 4 e 7 quilômetros, voando para longe de suas caixas-ninho.

Dessa forma, seria virtualmente impossível, para o projeto, obter tamanho sucesso sem o envolvimento dos vizinhos dos fazendeiros que aderiram à iniciativa, vizinhos muitas vezes de outras nações, culturas e religiões.

Uma retrospectiva completa do projeto, tanto no âmbito político quanto da, conservação da biodiversidade, foi publicado em maio de 2017 na revista científica Trends in Ecology & Evolution – Nature Knows No Boundaries: The Role of Nature Conservation in Peacebuilding ou, em português, A Natureza Não Conhece Fronteiras: O Papel da Conservação da Natureza na Promoção da Paz. O estudo é uma parceria internacional entre pesquisadores da Suíça, Jordânia e Israel.

Os resultados do projeto, inclusive para a agricultura, são impressionantes! Segundo o Ministro da Agricultura de Israel, Yoav Motro, desde seu início, as aplicações do Composto 1080em plantações caíram, em média, para 40 a 60%. Os dados coletados por Motti foram apresentados, em 2015, na Conferência Européia de Manejo e Controle de Pestes, em Sevilha, Espanha.

Em janeiro deste ano, pesquisadores do Oriente Médio, Mediterrâneo e África participaram de um encontro na Jordânia para debater os resultados do projeto de Leshem e traçar estratégias para sua expansão.

Os participantes declararam, em conjunto que, no momento atual, o programa é mais importante do que nunca devido  ao recente anúncio do presidente norte-americano Donald Trump, em dezembro último, sobre o reconhecimento de Jerusalém como a capital oficial de Israel, o que acirrou as relações entre Israel e países vizinhos.

Atualmente, o programa Aves Migratórias Não Conhecem Fronteiras, de Yossi Leshen, desenvolve inúmeros projetos voltados à conservação dessas aves por meio do envolvimento de voluntários e colaboradores de Israel, Palestina e Jordânia que, constantemente se encontram em seminários, workshops e, claro, fazem confraternizações.

Ah, e as corujas? Elas continuam voando livres pelos céus do Oriente Médio, na verdade. Hoje, existem nada menos que milhares de caixas-ninho ocupadas por famílias de corujas, espalhadas por fazendas em toda a região da Faixa de Gaza (veja no mapa no final deste post).

Em 2008, Leshem foi homenageado pelo governo Israelense com uma das mais altas honras do seu país, o prêmio Lifetime Achievement Award for Environmental Protection. Ele vive em Israel, tem 68 anos de idade, 5 filhos e 7 netos. E, se você quiser saber mais sobre o ambientalista, ele escreveu um livro com Carole G. Vogel, no qual conta tudo sobre sua história: The Man Who Flies With Birds.

Corujas Livres, no Brasil

Em uma parceria inovadora com o grupo de pesquisa liderado por Leshem, o Instituto Passarinhar, que eu dirijo, lançou este ano o programa Corujas Livres. Nosso objetivo é promover a conservação da Coruja-das-torres brasileira (Tyto furcata), impulsionar e certificar a implementação de solturas e garantir o estabelecimento de caixas-ninho voltadas ao controle de pestes em áreas rurais e urbanas, sem o uso de pesticidas.

Se você é produtor agrícola, líder comunitário ou ativista de um movimento urbano entre em contato comigo para saber como participar. Há duas formas: pelo site do Instituto ou por-mail vonmatter@passarinhar.org .

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Fotos: Hagai Aharon, Amir Ezer, Andy Chilton.
Mapa: Ori Peleg, Alexandre Roulin.

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Sandro Von Matter

Pesquisador em ecologia e conservação, se dedica a investigar questões sobre o topo das florestas tropicais e as fascinantes interações entre animais e plantas. Hoje, à frente do Instituto Passarinhar, é um dos pioneiros em ciência cidadã no Brasil, e desenvolve projetos em conservação da biodiversidade e restauração ecológica, criando soluções para tornar os centros urbanos mais verdes.