Páginas que pesam sobre as costas

As páginas em trevas de qualquer livro da vida, aquelas que preferimos esconder, que rasgamos, insistem em pegar o caminho do vento forte que sopra para dentro das nossas limitações. Primeiro cochicham nos nossos ouvidos, nos momentos em que menos esperamos, e depois entram como um arrepio de culpa e arrependimento. Arrancamos na raiva. Cortamos no desespero, mas elas se mantém impressas no chão da nossa alma, no coração dos nossos instantes de fluxo meditativo para o acerto de contas conosco mesmo.

O pior é quando voam por aí nos envergonhando, escapando das nossas rédeas e nos revelando em erro e desculpa. A sorte é que todos as carregamos, sem exceção.

Por que cargas d’água essas páginas fragmentadas de usura, essas asas escuras que insistem em aterrissar nas nossas costas de areia? Ficam ali escorando nossas ruínas e as ruínas de T.S. Elliot. A frase do escritor de “These fragments I have shored against my ruins” é inspiradora da obra Ruptura do artista mexicano Héctor Zamora.

Todos os pedaços doidamente doídos dessa ruptura foram jogados andares abaixo do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. Permanecem em cima de uma mesa no saguão, disfarçados de livros. As páginas rasgadas que voaram foram resgatadas e colocadas dentro das capas e fazem parte da exposição Dinâmica não linear.

É uma reordenação inconsciente da balbúrdia escancarada. Uma nova história feita de passado, que se mistura ao presente, e que tenta adivinhar o futuro. Mas, não há como esconder histórias já escritas indelevelmente. São registros que não se apagam. Digamos, para nos acalmarmos, que as tentativas são louváveis.

O louvável, o desejável, o funcional… Tantas vezes tão longe do natural.  A obra O Abuso da História é um basta aos construtos, às crenças. O que escolhemos plantar nos nossos espaços pré-definidos e decorativos? Zamora prefere o jardim aleatório, o caos formador do acaso inerente à vida. Joga com tudo. Arremessa tudo. Semeia violentamente pela janela, no ímpeto de se livrar das amarras do cotidiano quadrado.

Mas esse livrar-se não é algo fácil. E quando ele percebe, já está grudado no dia a dia do Museu de Arte Carrilo Gil, na cidade do México. As pesquisas na área de arquitetura permitiram que Zamora construísse uma estrutura de metal coberta por papelão, plástico e madeira, que cai como um paraquedas teleguiado diretamente nas paredes do museu.

Zamora viveu lá alguns meses, de certo, pensando na relação íntima entre artistas e museu. Um comensalismo necessário, que questiona o quem se adapta a quem.  Provavelmente, o menor ao maior. A menos que se desenvolva um providencial parasitismo que chega minúscula e lentamente e vai sugando quase que de forma imperceptível as forças do grande ser guardador da arte, faminto à procura de artistas para digerir, não sem antes cozinhar na caldeira das pasteurizações antiácidas.

A obra que borbulha crítica parede acima do Museu chama-se Paracaidista (paraquedista). Não há como não fazer a ligação também com as pessoas que ocupam irregularmente um pedaço de terra. No México, elas são chamadas assim.

Quantas cidades no mundo em emergência habitacional? São Paulo tem déficit de 230 mil moradias. Terrenos, edifícios abandonados são ocupados por famílias que não têm condições de pagar aluguel e pulam de galho em galho à procura de uma saída.

Quem sabe abrir espaço nesse prédio na Colômbia e consumir toda essa banana que abarrota o andar. O povo de lá pode ensinar a experimentar a fruta nas suas variadas etapas de maturação. Banana meio verde, meio marrom de podre. Entra tudo na culinária dos habitantes. A cada dia viu-se um matiz escapando pela janela estufada.Um espectro do amadurecimento. Vários aspectos do mesmo ser. Ver, apreciar e saborear cada etapa.

Terá irritado algum passante ao cair de madura na cabeça de um desavisado que não incorporou ao seu cotidiano a obra? Delírio Atópico transforma arranha-céu em fornecedor dadivoso de bananas vindas do alto, como na velha e boa floresta que se espera continue vibrando entre verdes, amarelos e marrons e não apenas como espectro branco fantasmagórico flutuando sob uma costa litorânea qualquer em noite escura, como nas histórias de horror que mais e mais alicerçam nosso cotidiano sem que nem sintamos as costas encurvarem sob o peso da modernidade estampada em nossas corcundas. Mas, como é esperança que ronda essa época, que venham as luzes de Natal para iluminar nosso medo.

EXPOSIÇÃO DINÂMICA NÃO LINEAR – HÉCTOR ZAMORA
Data: até 02/01/2017
Local: Centro Cultural Banco do Brasil | CCBB SP
Horário: quarta a segunda-feira, das 9h às 21h
Entrada gratuita


Fotos e vídeos: site do artista

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.