Os tamancos resistem

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A educação ensina que não é de bom tom subir nas tamancas. Mas, nesse caso, defendo uma subida coletiva em favor da preservação dele: do próprio tamanco. Uma popularização desse peso pesado da caminhada coletiva, que remete ao trabalho duro na terra e na água. Quem deu a ideia foi o Ulisses Galetto, do Grupo Fato, que resiste há duas décadas, fazendo música ao som dos tamancos do fandango paranaense, combinado com instrumentos, objetos, intervenções eletrônicas, programações, samples… Tudo acompanhado das letras de grandes poetas do estado.

Por que mais gente não navega nessa maré dos tamancos para arranjar as composições? É essa a pergunta que o Fato faz. Ouça Valadares, inspirada na ilha paranaense, terra do ultrarresistente fandango, uma das manifestações populares mais antigas do Brasil. Na gravação abaixo você vai conhecer a Tamancalha, um instrumento inventado por Zé Loureiro Neto, um batedor de tamancos, construído sobre uma caixa de madeira. É uma invenção que diz: não sabe tamanquear com os pés? Vai com as mãos mesmo. Não tem desculpa.

O fandango tem origem na Espanha, mas chega ao litoral com os primeiros colonos açorianos em 1750. Era “batido” durante a antiga celebração chamada entrudo, o nosso carnaval hoje. Quatro dias em que a população ou comia barreado (prato típico do Paraná) ou batia as tamancas numa dança que em três séculos virou típica na coreografia e na música ornamentada pelas rabecas, adufos e violas tocados pelos mestres. Gente insistente e responsável que tem nas mãos e na vida a missão de levar a cultura popular à frente. A cineasta e pesquisadora Lia Marchi fez um filme que é um registro belo e cuidadoso do fandango.

Com onze documentários e quatro livros, entre outros produtos culturais, como exposições, seminários e cursos, Lia é outra resistente. Criadora e coordenadora do projeto Tocadores, dedica-se há 18 anos à pesquisa e divulgação das culturas tradicionais e populares, especialmente do Brasil e de Portugal. Agora ela se prepara para lançar aulas em vídeo em que registrou o toque dos mestres fandangueiros, músicos que fazem as duplas dançarem com esses sapatos que nos parecem tão incômodos, mas que tem um passado fincado no instinto de proteção: pregos, anzóis de pesca, objetos cortantes perfuram uma bota, mas não a madeira.

Em locais de muita água, como na Holanda, com boa parte do território abaixo do nível do mar, tamancos de madeira servem para manter pés secos e proteger do barro e da neve. O tamanco lá apareceu em 1487 e com o tempo ganhou outras funções, como alisar a terra depois do plantio e proteger os pés contra acidentes em olarias.

A partir da Segunda Guerra Mundial, o calçado passou a ser produzido industrialmente. Nessa época, os membros da resistência ao nazismo fabricavam os tamancos com o salto invertido para enganar os alemães durante as perseguições. Os holandeses mais velhos, crianças e alguns lavradores do campo usam o tamanco até hoje.

Jean-François Millet (1814-1875) The spinner Goatherd of the Auvergne

O pintor realista francês Jean Millet, que ficou conhecido como precursor do realismo nas suas obras com trabalhadores rurais, em 1866, retratou o que hoje denominaríamos de uma sustentável jovem camponesa. Ela trabalha a lã enquanto cuida das cabras.  Está com chapéu de palha, vestido de material rústico e áspero. Nos pés, eles, os tamancos. Ô coisa barulhenta, que forma calos e bolhas nos pés de quem não sabe usar. Muitos dizem que é preciso encolher os dedos para andar.  O que é a adaptação… É assim. Antes isso do que ter os pés inutilizados…

A Pair of Leather Clogs 1889 Van Gogh.jpg#

Fico aqui imaginando o que pensava Van Gogh ao pintar em 1889 esse par de tamancos de couro sobre uma mesa. Inspiração em Millet, afirmam alguns. Já havia pintado outros pares de calçados na sua fase em Paris. Seriam os sapatos que o levaram até lá? Os tamancos, pintou em Arles.  Seria, agora, a saudade da terra natal, Holanda? O que diria ele dos 96 tamancos suspensos do artista sonoro e escultor alemão Gerhard Trimpin que vive nos EUA?  

Nada é mesmo definitivo nessa nossa caminhada. Como escreve o filósofo Heidegger “na rude e sólida gravidade do tamanco, afirma-se a lenta e persistente caminhada, através dos campos, ao longo dos sulcos, sempre semelhantes…” Aragem na terra e no ar traça também sinais de fumaça. Caminhos insólitos em que o continente vagueia perdido para preservar o que resta do nosso patrimônio. É lenta e difícil essa luta pela sustentabilidade das comunidades que mantém a cultura popular viva. Perseverante e duradoura, essa resistência fala a todos nós. Não neguemos nossa parte nisso. Vivemos nesse planeta, nesse país que resiste nos grandes e pequenos guetos.


Fotos: Klompen –  Museu Frye,  Barco tamanco – Museu Zuiderzee, Fiandeira – Museu D’Orsay, Tamanco – Museu Van Gogh

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.