O vexame escandinavo de Michel Temer

vexame de Michel Temer na Suécia

*Por Claudio Angelo

Na mitologia escandinava, Ragnarök designa uma série de eventos futuros que resultariam num grande cataclismo, na morte dos deuses e finalmente na submersão do mundo. Foi mais ou menos o que aconteceu com Michel Temer na semana passada, em sua primeira viagem oficial à Noruega. O presidente achou por bem dar uma banda no norte europeu para escapar por uns dias da crise política, mas acabou enfrentando um Ragnarök particular: na sexta-feira, o saldo de sua visita de dois dias a Oslo era um puxão de orelha dos noruegueses, um humilhante corte de doação internacional, um protesto de rua — e uma gafe.

Não precisava saber ler as runas para ver que o rolê não tinha como terminar bem. Afinal, para o cidadão norueguês médio, a única coisa que importa no Brasil é a Amazônia (Antes que vocês venham com essa de “esses europeus já desmataram tudo e agora vêm cagar regra pra cima da gente”, saibam que a Noruega é 40% floresta, 40% campos naturais e montanhas, 7% pedra e gelo, 7% água e só 3% agricultura. Grato.) A Noruega doou US$ 1,1 bilhão de seu fundo soberano para financiar a política de redução do desmatamento no Brasil desde 2008. Mesmo para um dos países mais ricos do mundo, US$ 1,1 bilhão é um bom dinheiro. A única coisa que eles pediram em troca foi a redução das taxas de desmatamento. E o Brasil não tem como esconder a má notícia.

O desmatamento na maior floresta tropical do mundo está fora de controle — admitiu-o candidamente o ministro Sarney Filho em Oslo, na fala mais desastrada de seu mandato: “só Deus pode garantir” que a taxa cairá. Essa taxa cresceu 60% nos últimos dois anos, e o presidente brasileiro e seu governo “semiparlamentarista” têm feito de tudo para que cresça ainda mais.

Num esforço para se manter na cadeira, em que cada voto no Congresso importa, Temer se atirou de corpo e alma nos braços da bancada ruralista, que apoiou o impeachment vendo na ascensão do peemedebista uma janela para implementar de forma mais acelerada sua agenda de desregulamentação total do campo.

A lista de malfeitos ambientais resultante dessa aliança é conhecida: congelamento da demarcação de terras indígenas, desmonte da Funai, licenciamento ambiental ameaçado pelo próprio ministro da Casa Civil (aliás acusado de crimes ambientais e sobre quem há suspeitas de grilagem, mas fecha parênteses) e duas Medidas Provisórias ceifando 600 mil hectares de áreas protegidas para atender meia-dúzia de políticos e grileiros locais do Pará.

Reduzir áreas protegidas, ou mesmo ameaçar reduzi-las, é uma das maneiras mais eficientes de aumentar o desmatamento. Tudo o que os grileiros precisam é de um sinal de que o crime pode compensar e ser anistiado. As MPs de Temer, aliadas ao corte de 43% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, garantiam uma continuidade no ritmo das motosserras.

Os noruegueses evidentemente acompanham a movimentação. Na semana passada, seu ministro de Clima e Meio Ambiente, Vidar Helgesen, mandou uma carta delicadamente desaforada a Sarney listando suas preocupações e ameaçando cortar o Fundo Amazônia caso a curva ascendente da devastação não fosse revertida. Helgesen lembrou que as regras do Fundo Amazônia, do BNDES, que gerencia a doação norueguesa, foram fixadas pelo próprio Brasil, e estão atreladas a resultados: se o desmatamento cai, o país acessa o dinheiro. Se sobe, não acessa.

Temer bem que tentou encarnar Loki, o trapaceiro filho de Odin, e anunciar na segunda-feira, antes de embarcar para Moscou e Oslo, o veto às Medidas Provisórias que retalhavam as áreas protegidas na Amazônia. Fez questão de comunicá-lo trumpianamente, num tuíte dirigido à modelo Gisele Bündchen.

A malandragem, porém, já havia sido desmascarada na véspera, sem querer, pelo próprio Sarney Filho. No domingo, num vídeo, visivelmente constrangido ao lado do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), Sarney anunciou ao “setor produtivo” da região de Novo Progresso que Temer vetaria as MPs. Não pelo mérito, mas pela forma: cortar área protegida usando um expediente inconstitucional poderia causar questionamentos judiciais — e seria pior para todo mundo.

Os dois, então, emendam que o governo mandaria em “urgência constitucional” ainda nesta semana, um projeto de lei para reduzir a Floresta Nacional do Jamanxim. O PL tiraria da Flona os mesmos 486 mil hectares da MP, ou seja, trocaria seis por meia-dúzia. Quando Temer entrou no Aerolula na segunda, até os índios isolados da Amazônia já sabiam que o veto era para norueguês ver. A cobertura do Jornal Nacional naquela noite já alertava sobre a patranha.

Na quinta-feira, numa coletiva improvisada no saguão do Ministério do Meio Ambiente da Noruega, ao lado de Sarney Filho, Helgesen confirmou que haveria uma redução da ordem de 50% no próximo repasse. Parte da imprensa brasileira e internacional presente ao local interpretou a declaração, em resposta a perguntas da imprensa, como um anúncio — o que não foi, porque a redução é automática dada a taxa de desmatamento. A interpretação equivocada, publicada inclusive pelo Observatório do Clima, ganhou repercussão imensa: por dois dias “Fundo Amazônia” ficou entre os “trending topics” do Twitter. Na sexta-feira, Helgesen soltou uma nota oficial reafirmando a parceria entre Noruega e Brasil, esclarecendo mais uma vez que o corte é uma regra do fundo e dizendo que, na verdade, a redução seria maior do que o divulgado: de US$ 110 milhões para um máximo de US$ 35 milhões, ou 68%.

Também na sexta, a premiê norueguesa, Erna Solberg, aproveitou para fazer um bonito com os contribuintes e puxar a orelha de Temer sobre o desmatamento. O brasileiro, que já tinha encarado uma manifestação contra sua política ambiental na entrada da residência oficial da premiê, deve ter ficado nervoso, porque chamou a Noruega de Suécia no pronunciamento conjunto.

Agora Temer tem contra si, além de todos os ambientalistas — que redescobriram sua voz — e 93% da população brasileira, a imprensa internacional, o principal doador do Fundo Amazônia… e a Gisele Bündchen. Num feito possivelmente inédito na história das visitas de Estado, o presidente foi ao exterior e voltou com um corte de investimentos em vez de uma promessa de mais dinheiro.

Mas até o Ragnarök tem um lado positivo. Na mitologia nórdica, após a catástrofe um novo mundo ressurgiria, e dois seres humanos, Líf e Lífthrasir, repovoariam a Terra. Pode ser que Oslo tenha sido demais até para um presidente que se orgulha dos seus 7% de popularidade e Temer resolva tirar alguma coisa dos ruralistas, só para variar. Pode ser que o episódio tenha dado a Sarney mais poder de barganha no governo, como analisou o ecólogo André Aroeira num post de otimismo incomum em seu perfil no Facebook. Essa hipótese terá dois testes cruciais nas próximas semanas.

O primeiro é, claro, o destino do Jamanxim. O PL reduzindo a Flona já não foi enviado nesta semana, como Sarney havia prometido. Pode ser que o governo agora enrole. É preciso também saber o que o Instituto Chico Mendes, “dono” da Flona, dirá no parecer que precisa dar sobre o caso. Em 2009, o órgão apontou que 35 mil hectares da floresta estavam invadidos e desmatados. A maioria dos ocupantes atuais do Jamanxim chegou lá depois da criação da área protegida, em 2006 — ou seja, são grileiros em busca de anistia. Se concordar com a redução de 486 mil hectares, o ICMBio estará abençoando a grilagem, com consequências devastadoras para a Amazônia no futuro. Pode ser também que o instituto tente regulamentar os usos da APA (Área de Proteção Ambiental) a ser criada após a redução da Flona, mas fazer isso na Amazônia é mais ou menos como convencer um cardume de piranhas a não comer um boi que atravesse o rio.

O segundo teste é o licenciamento ambiental. Temer já havia concordado em votar o projeto de licenciamento elaborado por Sarney em vez do texto dos ruralistas, apoiado por Eliseu Padilha. Mas deu aos ruralistas dois destaques que, na prática, desfigurariam a lei. A Frente Parlamentar da Agropecuária tem no licenciamento sua prioridade máxima agora.

Por ação ou por omissão, o que o governo fizer em relação ao licenciamento e às áreas protegidas terá peso enorme na imagem da administração — e nos mercados às commodities brasileiras, que acabaram de tomar mais uma marretada com a suspensão pelos EUA das importações de carne fresca.

Temer pode muito bem ignorar tudo isso e tocar sua agenda “semiparlamentarista” da mesma forma. Na lenda nórdica, o malandro Loki se liberta da rocha onde a serpente lhe deita veneno sobre o rosto no princípio do Ragnarök. Mas é bom lembrar que o destino do deus trapaceiro é trágico mesmo assim.

*Texto publicado originalmente em 24/06/2017 no site do Observatório do Clima

Foto: Ronny Hansen/Rainforest Foundation Norway

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Observatório do Clima

Fundado em 2002, o OC é a principal rede da sociedade civil brasileira sobre a agenda climática, com mais de 70 organizações integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais. Seu objetivo é ajudar a construir um Brasil descarbonizado, igualitário, próspero e sustentável, na luta contra a crise climática. Desde 2013 publica o SEEG, a estimativa anual das emissões de gases de efeito estufa do Brasil