O silêncio dos bugios inocentes


Mata Atlântica
, a mais rica e ameaçada floresta tropical da Terra está silenciosa. Nos últimos meses, milhares de vozes se calaram. O surto de febre amarela que se alastra por regiões silvestres de Minas Gerais e Espírito Santo arrasa parcelas alarmantes de populações de primatas. Sofrem notadamente os bugios, primatas com baixa imunidade ao vírus causador da doença. Esses primatas são notáveis por sua vigorosa vocalização usada na comunicação e demarcação de território.

“Vivemos uma tragédia ambiental sem precedentes”, lastima o primatólogo Sérgio Lucena, que há três décadas se dedica ao estudo de mamíferos da Mata Atlântica. Lucena coordena o Laboratório de Biologia da Conservação de Vertebrados na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e relata com tristeza e preocupação o episódio. “Apenas na região da Reserva Biológica de Caratinga, em Minas Gerais, havia entre 800 e 900 indivíduos” de Alouatta guariba, como é conhecido o bugio da Mata Atlântica. Na área que é a mais bem estudada por Lucena e seu grupo, “perto de 80% da população de bugios foi dizimada”.

A região de Caratinga pode ser considerada um modelo que replica o que o ocorre em outras regiões da floresta. Os acontecimentos de Caratinga podem ser um espelho do que se sucede em outras regiões da Mata Atlântica. Infelizmente, as notícias não são boas.

No Espírito Santo a tragédia se repete. Alertas da morte de bugios começaram a circular por volta do dia 10 de janeiro e 20 dias depois já se contabilizavam perto de 500 animais mortos. “Hoje, temos mais de 700 registros confirmados e, lamentavelmente, isso é apenas uma fração do que está ocorrendo na região”. Lucena informa que apenas os animais mortos na beira da mata são encontrados e reportados para as autoridades. Embora não exista uma contagem oficial das mortes – dada as dificuldades inerentes de se coletar informações dentro da mata–, o problema é subnotificado. Por analogia ao que ocorreu em Caratinga, não seria exagero apontar para seis ou sete mil mortes de bugios, apenas no Espírito Santo.

Muito preocupante também é que, na área do surto de febre amarela, vivem outras espécies de primatas, como o raro muriqui-do-norte Brachyteles hypoxanthus, e o sagui-da-serra Callithrix flaviceps. Com distribuição bem mais restrita que os bugios, estes outros macacos figuram na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção da IUCN (da sigla em inglês de União Internacional para a Conservação da Natureza). Embora não se tenha registro de Brachyteles hypoxanthus afetados pelo surto, o delicado Callithrix flaviceps foi contaminado: de um grupo de 14 atingidos pela febre, 12 morreram na região serrana que faz divisa de Minas com o Espírito Santo.

Guardiões dos humanos

A disseminação da doença em ambientes florestais é feita pelo mosquito fêmea do gênero Haemagogus. Indefesos e com imunidade mais frágil do que humanos, a maior parte dos macacos que se contagia, morre em até uma semana. Com a doença, ficam letárgicos, não são bons disseminadores do vírus. Os poucos que sobrevivem, criam imunidade e não transmitem a febre amarela.

Junto da doença, disseminam-se medo e ignorância. Sem motivos, a cada dia chegam notícias de populares que agridem e, até mesmo, matam bugios, animais que – junto dos humanos – também são vítimas. Não custa repetir: bugios, saguis, micos ou quaisquer outros mamíferos não são reservatórios do vírus e nem bons transmissores da enfermidade.

Pelo contrário, são nossos verdadeiros sentinelas, visto que sinalizam o surto e ajudam a detectar o problema precocemente. O alerta dado pelos primatas contaminados auxilia no combate à doença, agindo como marcadores para campanhas de vacinação humana em áreas afetadas. Todos os casos detectados até o momento são de febre amarela silvestre e, a partir da epizootia – termo usado para caracterizar uma epidemia em uma comunidade animal –, se tomam ações para evitar que a febre amarela se reurbanize.

É importante compreender, ainda, os impactos às cadeias alimentares e aos ambientes naturais, derivados da drástica redução das populações de bugios. Os impactos não se restringem aos macacos que morrem, mas há nítidos desdobramentos aos ecossistemas, à dinâmica da floresta, às interações entre organismos. Comedores e folhas e frutos, os bugios regulam o crescimento de certas plantas e ajudam a dispersar sementes. Atuam como jardineiros naturais, semeando árvores que lhes fornecem alimento.

“O desafio também é compreender em profundidade a ecologia da doença”, ressalta Lucena. Associado a pesquisadores de entomologia médica, os biólogos pretendem entender como a virose se dissemina na paisagem, se há relação com variações climáticas, que mecanismos disparam o aumento explosivo das mortes, qual o papel do homem neste processo. “Mapear e temporalizar os eventos é nosso desafio”, conclui – com um fio de esperança – Lucena.

Um dos principais temores que há, neste momento, é para que não se crie uma aversão equivocada aos macacos. O risco de se demonizar injustamente os primatas deve ser combatido francamente com informações qualificadas e educação para a população das áreas afetadas. Não podemos perder a esperança de que, em um futuro não muito distante, possamos ouvir novamente bandos de bugios com seus ruídos e gracejos.

Agora, ouça os sons dos bugios na Mata Atlântica e, em seguida, se delicie com os ótimos flagrantes que o fotógrafo e conservacionista Marcos Amend (um dos autores do blog de fotografia Por Trás das Câmeras) muito gentilmente ofereceu para ilustrar este meu post.

 

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José Sabino

Biólogo, doutor em Ecologia pela Unicamp e mestre em Zoologia pela Unesp. É professor e pesquisador da Universidade Anhanguera-Uniderp, onde coordena o Projeto Peixes de Bonito. Trabalha com comportamento animal e biodiversidade, além de dedicar especial atenção à divulgação e à compreensão pública da ciência. Desde 2000, vive no Mato Grosso do Sul – perto do Pantanal e de Bonito – com sua família e outros bichos