O poder dos pequenos gestos


“Viver é afinar um instrumento… de dentro pra fora, de fora pra dentro”.  A letra do vanguardista Walter Franco, de 1979, foi a inspiração pra a escolha do tema da 5a. Semana Senac de Sustentabilidade, que acontece durante este mês de agosto,  em  40 unidades da instituição. Colaborei (Maria Zulmira) com a curadoria temática (Descubra o seu Território – de dentro para fora e de fora para dentro) e atuei como mediadora e palestrante da abertura do evento no Senac Lapa Faustolo, em São Paulo.

Mas como colocar na prática diária a frase de Walter Franco?

Os quatro convidados para falar nesse dia – elegeram a sustentabilidade como valor para suas vidas e  responderam a essa pergunta. Cada um, a partir da sua perspectiva pessoal e profissional, refletiu sobre como ‘afina o seu instrumento’, de dentro pra fora e de fora pra dentro, pensando global e agindo localmente. É de cada que vou falar aqui.

Karla Schwarcz, moda com DNA sustentável

Karla tem 23 anos e é dona de uma marca de roupas infantis pouco convencional. Descendente de alemães, cresceu numa família que já tem a sustentabilidade como kit básico na vida: compostagem, energia solar, cisterna e uma conexão fina com o lugar onde vive, Interlagos. Quando escolheu o tema de seu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso -, no curso do Senac Moda, resolveu criar uma marca de roupas para crianças com DNA sustentável. O nome, Kili Kili, veio dos tempos em que brincava com o avô e ele tocava muitas vezes uma música que tinha esse nome e que quer dizer cócegas, em alemão. “A ideia era criar uma moda divertida e essa música me remete a momentos bons”.

Em sua confecção, Karla só utiliza produtos naturais como lã tingida com tintas vegetais. “Eu queria encontrar uma solução para uma coisa que sempre me incomodou: criança não pode brincar na rua, a criança não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, tem uma agenda cheia de cursos. A criança virá um robozinho por trás da ideia de que, se não for assim, ela não vai ter uma chance de futuro. E as crianças perdem a oportunidade de desenvolver seus sentidos. E a roupa acompanha a criança o tempo todo. Ao usar uma roupa que foi pensada para ela desenvolver os cinco sentidos, de forma criativa e curiosa, espero que ajudar a despertá-la para isso”.

Na foto ao lado, dá para se ter ideia de como é a moda criada pela Karla. mostra dois modelos multiuso. Mas é o mercado? Dá pra competir com uma roupa assim?

“ Depende do que se quer comprar. Uma roupa que daqui há dois, três meses vai para o lixo ou uma peça que tem respeito pelo material, pelo fornecedor, pelo usuário, pelo meio ambiente? “Uma peça da Kili Kili é para a criança brincar e usar como ela quiser e vai acompanhá-la durante toda a infância e ainda passar para a próxima geração, não tenho dúvida”.

José Bueno, um samurai a serviço das águas

Ele resistiu durante muito tempo a misturar os seus lados A, B, C e D, ou seja, de arquiteto, educador, mestre em artes marciais (sensei Aikido no Dojo Harmonia) e ativista pelas nascentes e águas urbanas de São Paulo. Mas está chegando à conclusão de que a arte do Aikido tem muito a ver com tudo o que ele faz no campo da sustentabilidade: “transformar o impossível em possível, o possível em fácil e o fácil em elegante”.

Junto com Luiz de Campos Jr. criou a iniciativa Rios e Ruas com a qual se propõem a redescobrir e trazer de volta à vida da cidade de São Paulo as centenas rios, riachos e córregos soterrados pelo cimento da megalópole. Uma inovação socioambiental urbana (a segunda exposição que realizam para contar essa história está no Sesc Pinheiros, até 24 de setembro)

Com o Rios e Ruas, José Bueno se reencontrou com o seu lado arquiteto. Hoje, ele trabalha pela arquitetura da desconstrução, ou seja, para colocar na prática o que setores da academia passaram a defender na teoria: a necessidade de se desenterrar os rios urbanos, de se voltar o olhar para o desenho ambiental que foi destruído com uma visão que procurava controlar as águas, submetê-las aos comandos da engenharia sem considerar a sua força e importância na sustentação da vida.

Isso já acontece em vários lugares do mundo como Seul, na Coreia do Sul , na Alemanha e outros países. E, em breve, no Brasil: “ Nosso plano é criar uma área demonstrativa de pelo menos 200 metros para as que as pessoas sintam o que um rio saudável pode fazer por uma cidade e seus habitantes”.

A ilustração ao lado mostra a rede de cursos d’água da cidade de São Paulo. A maior parte está coberta  canalizada, porém viva: “Os rios nascem como uma criança límpida. O número oficial é 300, mas podemos chegar a 800 cursos d’água ocultos na cidade. É impressionante que tenhamos enterrado esses rios vivos e não façamos nada para mudar isso!”.

E pra não deixar nenhuma dúvida de que o que ele fala é verdade, os participantes do evento, no auditório do Senac, puderam tocar, cheirar e ver como é a água que sai da nascente do riacho do Iquiririm, na zona Oeste da cidade. Um pote com essa água passeou pela plateia para que todos vivessem essa experiência. E uma pessoa descreveu o que sentiu: “Fiquei ansiosa para que o vidrinho com a água chegasse até mim. Me deu uma sensação de esperança ver que, apesar de tudo o que fizemos com a água, ela ainda nasce assim límpida e limpa”.

Ao final da conversa, cada espectador ganhou um vidrinho com a água da nascente do riacho Iquiririm (na foto que ilustra deste post). “Nossa intenção é de que as pessoas levem a água e se conectem com ela. E resolvam fazer algo”.

Cláudia Mattos, uma bailarina na cozinha

Ela percorreu vários caminhos até se reencontrar com as panelas que tanto gostava na infância. Foi bailarina, terapeuta corporal, técnica em arquitetura. Viajou pela Índia e tantos outros lugares até descobrir que, na biodiversidade brasileira e no seu Espaço Zym, estavam o centro da sua felicidade.

“Passei um tempo no interior e sempre gostei muito de pisar na terra, colocar o pé no chão. E por que não ter isso na cidade se eu tinha um espaço que era a minha casa com um amplo terreno com mais de 250 espécies de plantas que, ao longo dos anos, foram sendo plantadas ali com tanto carinho?”

A cada segundo da nossa vida podemos nos conectar com a terra e suas riquezas. Não é preciso ir muito longe. É só ir até o bairro do Cambuci, que tem o nome da fruta símbolo da cidade de São Paulo, por exemplo. Esta é uma iguaria para a culinária e um patrimônio da Mata Atlântica no quintal de tantas casas paulistanas. Por isso, experimentar suas criações culinárias é uma viagem para os sentidos.

Quase nada é o que parece e até quem jura que nunca vai comer jiló pode mudar de ideia ao provar suas inesquecíveis entradas, suas moquecas de jaca, bardana entre tantas outras delícias. A banana verde, uma de suas matérias-primas favoritas, nas mãos de Cláudia vira caponata, carne-louca, lasanha, biomassa, patê e por aí vai.

A ‘volta pra casa’ fez com que Cláudia aos poucos se transformasse numa referência da chamada ecogastronomia no Brasil e no exterior. Sua conexão com a biodiversidade brasileira levou-a se tornar uma das lideranças do movimento Slow Food no Brasil e professora na Escola Schumacher Brasil criada por seu ídolo, o indiano Satish Kumar .

“Sustentabilidade pra mim tem a ver com diversão. Eu adoro apaixonar as pessoas, é um barato ir para a cozinha e aprender a cozinhar. Reunir para contar histórias e fazer comida boa em torno de um fogão, aquecer as relações e colocar as mãos na massa. Além disso, comer é um ato politico. Você faz escolhas ao comer e isso tem um poder enorme”.

Maria Zulmira de Souza, comunicação com propósito, mas com leveza

O meu “de dentro pra fora, de fora pra dentro” começou quando eu ainda criança e desenvolvi um gosto pela palavra falada. Sempre era escolhida para fazer os discursos da escola ou até fazer a leitura da Bíblia quando ainda ia à igreja. Brinco que sempre adorei microfones (foto abaixo).

O gosto pela comunicação levou-me ao jornalismo como profissão mas o exercício da mesma não preencheu o vazio da falta de compromisso que a mídia, em geral – desde a minha formatura nos idos de 1984- sempre manteve de um jornalismo cidadão voltado para o interesse público.

Na minha busca, cheguei à TV Cultura, no início da década de 1990, e ao tema Ecologia e meio ambiente que cresciam naquela época. E pensei: por que não criar um programa de televisão que só trate de questões ecológicas?

No frescor dos meus 27 anos, não me preocupei se receberia um ‘não’. Só confiei no ‘sim’ como resposta e apresentei o projeto que deu origem ao Repórter Eco – programa que está na grade da TV desde fevereiro de 1992. Por 19 anos, fiz parte de uma equipe memorável que levava a causa ambiental a milhões de pessoas ajudando-as a escolher suas profissões, a mudar seu comportamento no dia a dia.

Esse foi o pontapé para um caminho sem volta no sentido de desenvolver um trabalho que chamo de comunicação com propósito.  A experiência tem revelado que o humor e a leveza têm que andar juntos na construção dessa nova forma de sensibilizar as pessoas para causas que realmente importam. A história se encarrega de mostrar o quanto uma pessoa com iniciativa pode inspirar outras e produzir resultados incríveis.

Cada informação que produzimos pode ser útil e transformadora, mas não precisa ser chata e pesada. A prática tem demonstrado que ainda não descobrimos a fórmula mágica que vai tornar a sustentabilidade tão “sexy” quanto as campanhas que mobilizam milhões para causas bem menos nobres.

Tudo isso me fez refletir sobre a necessidade de levar a sustentabilidade para um público que não só não entende o que estamos falando, mas sequer consegue ler essa palavra: os analfabetos do Brasil. São cerca 31 milhões entre analfabetos funcionais e totais. A inspiração veio da própria mãe: Tetê Brandolim, já contei a história dela aqui no blog Casal Verde, no Conexão Planeta.

O centésimo macacaquinho

Pode parecer que as coisas vão no caminho errado quando a gente olha para o cenário que a imprensa, em geral, noticia. Mas há como que um mundo paralelo onde as pessoas estão fazendo e transformando seus cotidianos a partir de atitudes colaborativas e cidadãs.  Isso me faz lembrar da história do centésimo macaquinho e o poder que um pequeno gesto tem de provocar grandes transformações.

Cada pessoa que colocou a mão na água do Iquiririm sentiu seu cheiro e sua temperatura. Sabe agora que as nascentes, bem como os rios encobertos pelo asfalto, estão vivos. E levou pra casa uma pequena amostra daquela nascente. Pode parecer pouco, mas para quem está aberto para uma nova forma de agir “de dentro pra fora, de fora pra dentro”, este é um passo importante na caminhada. Comigo foi assim.

Sonho ou visão? Depende de como você quer viver a sua vida.

Agora, se você quiser assistir à conversa que resultou neste post, que aconteceu no Senac Moda (Lapa Faustolo), é só pular direto para os 22 minutos do vídeo abaixo.

Fotos: Divulgação (Rios e Ruas), Fernanda Morais (Karla Schwarz), Marina Scanavez (modelos infantis) e Arquivos pessoais (demais imagens)

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Maria Zulmira de Souza e Ulrich Zens

Maria Zulmira de Souza, a Zuzu, é jornalista pioneira na área de comunicação sobre sustentabilidade. Criou programas e séries mostrando como viver de forma sustentável no dia-a-dia. Conselheira de várias ONGs e instituições, dirige a Planetária Casa de Comunicação. Ulrich Zens, o Uli, é arquiteto paisagista alemão. Desde 1984, pratica o paisagismo multifuncional em projetos para espaços públicos na Alemanha, Arábia e Brasil. Veio a São Paulo por causa de uma história de amor. Eles formam o Casal Verde, aqui e no YouTube, para tratar de sustentabilidade, arquitetura, maturidade, arte e relações saudáveis.