O mundo pelos olhos de uma criança

Quando defino (ou sou convidada para) uma viagem, logo penso no assento que vou escolher no avião. Adoro ficar na janela:  é sempre meu passatempo preferido durante o voo. E, na última viagem que fiz, há duas semanas, em um trecho de pouco menos de uma hora, entre São Paulo e Curitiba, ganhei um presente: no banco de trás, colado ao meu, sentou uma garotinha de cerca de 5 anos, que narrou tudo que via passar à sua frente, pela janela, transformando seu olhar em palavras, suas descobertas em poesia.

Os olhos da menina ficaram atentos à vista oferecida pela janela, do início ao fim do voo. Nenhum detalhe escapou de seus pensamentos, que foram compartilhados em voz alta. Que sorte a minha!

Durante a decolagem, a cidade foi ficando pequena. “Quando a gente está lá em baixo é tudo grande, mas agora é tudo tão pequeno”, parece óbvio, mas essa é uma daquelas observações necessárias para tornar consciente esta constatação.
A seguir desta fala, a menina emendou uma série filosófica de pensamentos que apenas uma criança se dá a liberdade de ter: “Sabia que não dá pra ver, mas dentro das casas tem um monte de gente?”, “E, se tem gente, também deve ter cachorro”, “Quantos bichos será que moram em todas essas casas?”, “E aquele rio? Olha a curva que ele faz! Lá embaixo nem dá pra ver esse desenho dele”.

“O que é esse monte de água?”, perguntou a garota. “A represa”, respondeu o pai. “A forma dela parece a de um rato gigante, né?”, completou a menina.

Ganhamos altitude, a paisagem mudou: passou de um período de transição bastante branco, para, de repente, o céu e as nuvens. A vista oscilou entre o branco total e um céu azul com as nuvens abaixo de nós. “Pai, tem que ficar olhando. Quando o branco some, aparece um chão de nuvem”. “Será que alguém já tentou ficar em cima de uma nuvem?”, “Parece ser tão fofinho, lá”, “E os passarinhos? Será que eles conseguem fazer isso?”.

Quando o piloto anunciou a descida e iniciou movimentos diferentes com a aeronave, a relação do externo com o interno chamou sua atenção: “O avião, quando vira desse jeito, deve estar encostando a asa na nuvem, está sentindo pai? Olha como dá pra sentir a nuvem!”. O avião desce mais, a vista fica branca. “Paaaaai, olha! Estamos dentro da nuvem! Você sabia que estar dentro da nuvem é assim?!”, “Será que eu consigo ver a chuva no meio da nuvem? Onde será que ela fica guardada?”.

Escutar os pensamentos em voz alta dessa menina deixou meu voo repleto de poesia. Escutar o que as crianças falam me faz perceber o mundo oculto que nós adultos não enxergamos. Será que tudo isso faz parte de banalizar o simples? Quantas sensações, ideias, relações estão escondidas em tudo que nos acontece? Quantos encantos passam despercebidos todos os dias?

Acredito que a melhor resposta que temos para as perguntas acima é dada pelas crianças. Precisamos de ouvidos atentos, sensíveis e disponíveis para escuta-las. Precisamos da poesia do olhar das crianças para encontrar todas essas infinitas possibilidades naquilo que nos é comum, que nos é rotina e que já não vemos mais.

Obrigada, garota da blusa listrada com grandes corações. Seu olhar e seus pensamentos altos fizeram meu voo ser inesquecível.
Foto: Ana Carol Thomé

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Ana Carol Thomé

É pedagoga, especialista em psicomotricidade e educação lúdica. Participa de diversas formações sobre primeira infância, brincar e arte para crianças e coordena o programa Ser Criança é Natural (que dá nome a este blog), do Instituto Romã, que incentiva o contato das crianças com a natureza. Organiza a ação Doe Sentimentos e acredita no poder da infância e que o mundo pode ser melhor.