Para além do consumo, o potencial criativo da infância

o-chapeu-do-astronauta-e-o-potencial-criativo-na-infancia-foto-edu-pixabay

Segunda-feira, mais um dia de trabalho. Três mil designers de brinquedos acordam, tomam café e, repletos de novas ideias, seguem para seus escritórios. Às 9h30 uma reunião os espera; momento de brainstorming e de ficar por dentro das tendências e das novidades do setor. “Precisamos inovar”, lança um deles, enquanto outro afirma: “Não se esqueçam, as crianças gostam mesmo daquilo que é colorido!”.

Mas como eles sabem disso? Pesquisas. Números. Livros. Dados. Planilhas. Gráficos. Focus Group. (Existe fonte mais segura, por acaso?).

Estes designers realmente sabem do que as crianças gostam e conhecem os encantos necessários para envolver pais e filhos. E – o mais importante – sabem vender! Só no ano passado tiveram um faturamento, incluindo o varejo, estimado em R$ 9,5 bilhões. Para fazer tanto dinheiro, só conhecendo muito bem o seu público alvo, não é mesmo?

Seguros de si iniciam o projeto de um novo brinquedo e apostam: será o mais vendido no próximo ano! “As prateleiras das lojas esvaziarão em questão de segundos”, celebram confiantes. Eis que fica pronto o novo artefato. Único. Inovador. Jamais visto antes. Capaz de proporcionar experiências extraordinárias. Contribui para o desenvolvimento cognitivo e motor da criança.

Fabricado em plástico de ótima qualidade, o brinquedo é embalado. Uma enorme caixa de papelão o envolve. O personagem do último sucesso da televisão está na caixa; o produto foi licenciado – afinal, parcerias com a indústria de entretenimento são importantes, pois alavancam as vendas beneficiando todos os envolvidos.

Um manual de uso também pode ser visto do lado externo da caixa. Com letras coloridas, aponta o passo-a-passo para utilizar os tantos botões que compõe o brinquedo. Afinal, para a brincadeira dar certo, as crianças precisam compreender as funções disponíveis, não é mesmo?

Finalmente, as incontáveis embalagens são distribuídas pelas lojas de brinquedos do país. As prateleiras estão cheias e, para a alegria de todos, o programa da personagem licenciada anda com audiência excelente. Assim que entram na loja, as crianças logo gritam: olha só! O brinquedo da minha personagem favorita! É esse que eu quero.

Alguns pais compram sem titubear, outros fazem cálculos, descobrem que precisarão economizar com outros gastos (o preço é salgado!), mas todos levam e saem satisfeitos da loja; felizes por realizar o sonho de seus filhos e filhas.

As crianças carregam a nova aquisição, realizadas. Ao chegar a casa, demoram algum tempo para conseguir abrir a caixa: rasgam daqui, furam dali, recorrem à ajuda do irmão mais velho, pegam um tesoura, faca e, finalmente, o brinquedo pode ser manuseado. Ufa!

Atenta, a criança olha para aquele grande pedaço de plástico: Muitas cores! Muitos botões! Para que servem? Aperta todos ao mesmo tempo, investiga se existe algo dentro, chacoalha, coloca ao lado do ouvido, sai correndo pela casa, joga para cima. Depois dessa longa pesquisa, vai à sala de casa e, equilibrando o brinquedo na cabeça, comunica orgulhosa à família: eu descobri! Isso aqui é um chapéu de astronauta.

Esta breve história – meramente ilustrativa – nos desperta para a imaginação criadora que habita a infância. A criança sempre terá a capacidade de ressignificar e imaginar. Essa é a sua – tão potente – forma de resistência.

Para a pesquisadora Renata Meirelles, coordenadora do projeto Território do Brincar, existe um sufocamento da infância, provocado pelo excesso de brinquedos industrializados. Após mais de quinze anos registrando o brincar de meninas e meninos brasileiros, Meirelles destaca que viu muitas crianças reunirem ‘o nada’ para compor seus brinquedos. Em muitas comunidades pelas quais passou, o brinquedo industrializado não fazia parte do repertório das crianças – prioritariamente por uma questão de acesso.

Para uma sociedade regida pela lógica do consumismo, talvez isto seja ‘uma falta’, mas para aqueles que olham com cuidado para a infância, talvez seja uma oportunidade a ser valorizada.

Por não dar acesso ao percurso, tão rico para a criação de vínculos, o brinquedo pronto tende a tonar-se descartável, enquanto o brinquedo tecido pelas próprias mãos desperta um outro tipo de vínculo, que não se apega à posse, mas ao processo.

Crianças que transformam o mundo a partir das próprias mãos conhecem a riqueza do percurso. Se nos limitarmos a oferecer sempre o pronto e industrializado corremos o risco de tirar essa riqueza do campo experiencial da criança, além de reforçar os discursos e valores da indústria.

É preciso procurar um equilíbrio a fim de oferecer aos pequenos e pequenas um ambiente diverso e rico, que lhes dê oportunidades para explorar todo o seu potencial criador e para entrar nas profundezas do seu espaço interior. Só assim poderão descobrir seus próprios jeitos de sentir, de ser, de viver.

Foto: Edu/Pixabay

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Carolina Prestes

Comunicóloga, Mestra em Ciências da Comunicação e especialista em Infância, Educação e Desenvolvimento Social. Trabalha há mais de 12 anos com pesquisa e produção de conteúdo sobre temas diversos, principalmente nas áreas da infância, da educação e da cultura. É editora do Blog ‘Além dos Muros da Escola”, canal de reflexão sobre práticas de educação não formal, e fundadora da Letras&Linhas, empresa cujo foco é entregar textos que encantam, mobilizam e transformam. Mãe da Olivia e da Pilar