O brincar que envolve risco e o imprevisível da vida


Como pais, cuidadores e educadores, um dos nossos maiores instintos é proteger as crianças. Ninguém quer que seu filho ou aluno se machuque. Entretanto, devido a diversos fatores incluindo a violência, o aumento da presença e velocidade de veículos nas ruas e a fragilização da vida em comunidade, nos últimos anos esse instinto saudável se transformou. Para a nossa sociedade atual, cuidado muitas vezes é sinônimo de controle e vigilância.

Essa mudança tem muitos impactos e se mostra de diversas formas. Uma delas é a diminuição gradual das oportunidades que a criança tem de brincar livremente, longe do controle dos adultos, escolhendo seus próprios caminhos, desafios e, sobretudo, os riscos que deseja correr. Esquecemos que são justamente essas experiências que vão ajudá-la a, passo a passo, ou melhor, queda a queda, calibrar seu corpo e seu espírito para enfrentar os percalços e as belezas da vida. Em cada oportunidade que a criança tem de se desafiar, ela afirma a si mesma e ao mundo seu desejo de ir adiante, além daquilo que já domina, confiante que é em si e na vida.

Estamos falando, por exemplo, das experiências que as crianças tinham quando voltavam da escola e ocupavam os quintais, as ruas e os espaços abertos, num convívio livre e autorregulado entre irmãos e vizinhos, permeado por brincadeiras espontâneas e desafios que eram modulados segundo as habilidades, desejos e impulsos de cada um. Subir em árvores, descer barrancos correndo, pular de lugares altos, usar uma faca, nadar em água corrente, alimentar uma fogueira ou lutar usando o corpo são brincadeiras que envolvem risco e que sempre fizeram parte do repertório da infância. Acontece que esse tempo e espaço não existem mais, especialmente para as crianças que vivem em centros urbanos. Faltam chances de se arriscar, de se machucar brincando, de aprender e se fortalecer com isso, avaliar o que deu certo e o que não deu e seguir adiante.

Temos então o desafio de recriar um mundo onde as crianças possam ter a liberdade de ousar, descobrindo assim seus próprios limites e lidando com as incertezas da vida. A boa notícia é que há um movimento mundial, que ganha força em diversos países e culturas, no qual pais, educadores, pesquisadores e especialistas defendem o direito da criança a se engajar em brincadeiras que satisfaçam seu desejo por desafios – o brincar que envolve risco.

Conseguir proporcionar isso, ao mesmo tempo em que preservamos nosso instinto e dever de cuidar das crianças, não é uma tarefa fácil e envolve muitos aspectos. Acredito que o primeiro passo é respeitar o direito da criança sobre seu próprio corpo, que é dela e de nenhum adulto. E, junto com o respeito pelo corpo, vem o respeito pela vontade do que fazer com ele. O respeito pela liberdade de escolha em relação ao corpo. Em segundo lugar, precisamos confiar nas competências das crianças – de decisão, de movimento, de avaliação de riscos. O que muda quando as vemos assim? Quando a criança tem medo e avalia que não vale a pena, ela não se arrisca.

Outro aspecto é refletir sobre o que é aceitável quando pensamos em risco. Para responder a essa pergunta precisamos visitar nossos valores e nos perguntar até que ponto estamos confortáveis em ir e que valor vemos em permitir que as crianças se engajem em suas próprias aventuras e explorações.

Precisamos responder a nós mesmos: estamos confortáveis com um braço quebrado? Aceitar que correr riscos é importante, significa aceitar que acidentes podem acontecer. Qual é a consequência dessa brincadeira? Probabilidade não é o mesmo que consequência. Sim, uma criança pode cair da árvore. Na verdade, esse é o significado de buscar o risco: dar espaço tanto para o sucesso quanto para o fracasso. As crianças precisam de acidentes de pequena consequência para com eles aprender a evitar os grandes acidentes no futuro.

Isso não quer dizer que as crianças devem ser expostas a riscos que não trazem benefício algum, como produtos químicos, balanços quebrados, andar de carro sem cinto ou brincar onde os carros passam. Educadores e pais devem permitir os riscos benéficos. Os inaceitáveis sempre vão requerer a intervenção do adulto.

E, por último, podemos desenvolver algumas estratégias que nos ajudem a navegar melhor pela tarefa de permitir riscos benéficos e apropriados à idade. Nos últimos meses, duas ferramentas muito interessantes foram lançadas com esse intuito, uma voltada aos pais e outra às escolas:

O laboratório da Professora Mariana Brussoni, uma especialista em prevenção de acidentes ligada à Universidade de British Columbia, Canada, desenvolveu uma ferramenta online que busca ajudar os pais a lidar com seus medos e montar um plano que ajude seus filhos a terem mais oportunidades de experimentar riscos durante o brincar.

A Aliança Internacional de Espaços Escolares (International School Grounds Alliance – ISGA) lançou uma declaração, traduzida para o português pelo programa Criança e Natureza, sobre os benefícios do risco em espaços escolares para o desenvolvimento de crianças e jovens saudáveis. O documento foi endossado por 38 organizações de 16 países e 6 continentes. Seu conteúdo enfatiza que correr riscos é essencial para o bem-estar das crianças, e que os espaços escolares têm importante papel a cumprir no sentido de oferecer às crianças e aos jovens atividades que envolvam assumir riscos. Para isso, eles “não devem ser tão seguros quanto possível, mas tão seguros quanto necessário”.

Aqui no Brasil, o programa Criança e Natureza produziu dois vídeos sobre o tema: Quando o Risco Vale a Pena e uma entrevista da série Inspirações: A Criança que Se Sente Capaz (assista aos dois abaixo). São sinais de que, independentemente dos fatores culturais e pessoais que influenciam nosso modo de ver esse tema, vozes de todo o mundo tentam lembrar que o que torna as crianças realmente seguras é sua própria competência, são suas habilidades em lidar com o imprevisível da vida. E isso só se alcança praticando.

Foto: Shutterstock

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.