O Brasil, a fazenda e a floresta


Imagine um astronauta que tivesse a tarefa de desenhar um mapa sintético e inovador da Terra. Nessa empreitada imaginária, o astronauta atribuiria à China o papel de motor do comércio: os chineses ocupariam a posição de “fábrica” planetária. Em sua jornada espacial, ao olhar para a Índia, ele aplicaria a função de “escritório” da Terra: os indianos se especializaram em produzir softwares e a gerenciar remotamente grandes corporações em tempo real, via internet.

Qual é a posição do Brasil nesse cenário mundial? Nosso viajante espacial não teria dúvidas. Ao olhar para terras tupiniquins, o astronauta veria que temos a maior floresta tropical e a maior área agricultável do planeta. Somos, ao mesmo tempo, a “floresta” e a “fazenda” do planeta. Não é pouco, notadamente porque existe um bilhão de habitantes com fome no mundo e, simultaneamente, porque hoje a humanidade deve planejar novos modelos de negócios e desenvolvimento, menos agressivos à natureza.

Como resultado dessa combinação, nossa Nação tem a complexa tarefa de gerenciar os conflitos de sermos a “floresta” e a “fazenda”. Temos de produzir alimentos para atender às demandas internas e externas do país, enquanto precisamos cuidar e aprender a usar uma das maiores riquezas do planeta, a biodiversidade brasileira.

(Na foto que abre este post, o rio Teles Pires, no norte de Mato Grosso, é sitiado pela expansão da monocultura de soja. A legislação exige a manutenção de uma área de preservação permanente nas margens do rio)

O conhecimento científico e a inovação podem mudar nossa percepção do planeta

A aproximação da ciência com os tomadores de decisão é uma das frentes de trabalho que dará condições para a convivência harmônica entre a floresta e a fazenda.

De acordo com o engenheiro agrônomo e especialista em pastagens, Osmair Nogueira, há no Brasil 150 milhões de hectares de pastos, dos quais 50% estão degradados. Em bom estado de conservação, temos apenas 30%. Se os pastos degradados fossem adequadamente reformados com técnicas de cuidados com o solo e plantio de sementes de melhor qualidade, teríamos – ao menos em tese – a possibilidade de duplicar nossa produção pecuária. Detalhe: sem necessidade de desmatar um hectare sequer de floresta ou cerrado.

Nesse ponto, agrônomos e ambientalistas estão convencidos de que a recuperação de pastagens degradadas é a solução para conciliar a produção de carne e leite com a conservação da floresta. A palavra-chave aqui seria produtividade, tema que fortaleceu a agricultura, mas passa longe da pecuária do país.

Essa combinação entre floresta preservada e fazenda produtiva que, no passado, poderia fazer muitas pessoas perderem o sono, hoje pode ser vista como vantagem competitiva. O modelo, longe de estar pronto, é um desafio em construção.

No mundo contemporâneo, em busca de uma nova economia baseada em baixa emissão de carbono, o Brasil pode ser exemplo e dar um salto de desenvolvimento se aproveitar de modo sustentável a sua rica biodiversidade. Detentor de aproximadamente 15% das espécies do planeta, o país pouco usa essa vantagem competitiva. Parte dessa incoerência advém do desconhecimento e da baixa infraestrutura de Ciência e Tecnologia, cada vez mais marcada por cortes orçamentários que evidenciam a obsolescência intelectual de nossos governantes. Assimetrias regionais e dificuldade na fixação de profissionais nas regiões mais remotas e biodiversas do Brasil também inibem o uso mais aprofundado e inovador da fauna, flora e microrganismos.

O falso dilema entre desenvolvimento e conservação dos recursos naturais

O termo capital natural pode se aplicar tanto a terras da agropecuária como para florestas conservadas e outras áreas naturais. Anacronicamente, os dois segmentos estão em um suposto conflito no Brasil. Contudo, trata-se de um falso dilema. Biodiversidade deve ser vista como aliada ao desenvolvimento. Nunca como obstáculo. Uma constatação adicional, baseada em amplas pesquisas do setor, é que o Brasil ainda não investiu de forma adequada justamente na área em que teria mais vantagem sobre outros países: o uso sustentável de seus ativos naturais.

O país deveria revisar sua estratégia de desenvolvimento e focar seus gastos em áreas que historicamente são relegadas: recursos naturais, ciência e inovação. Se o Brasil ampliar seus investimentos nessas áreas estratégicas, sua biodiversidade será valorada de modo a que soluções surjam para fortalecer a conservação e uso sustentável desse vasto e único patrimônio natural.

Mudar comportamentos e superar preconceitos é a tarefa que temos pela frente. A vantagem é que o país, que tem a mais favorável relação de áreas de floresta, água e terra per capita do mundo, poderá usar de modo estratégico e sem destruir suas duas maiores riquezas: sua rica biodiversidade e a capacidade de produzir alimentos.

Não é empreitada simples, sobretudo porque temos de reeducar adultos. Seguramente não será na visão anacrônica de parcelas dos ambientalistas – resistentes a tecnologias – e nem na especulação gananciosa da parcela conservadora dos ruralistas – blindados a novos modelos de sustentabilidade –, tampouco na insensibilidade e limitação intelectual de dirigentes que encontraremos as respostas às necessidades do país.

Diante de tantas perguntas ainda sem respostas, é preocupante a falta de percepção e senso de urgência. A carência de lideranças capacitadas para conduzir processos de mudanças em escala é outro fator limitante. São dilemas complexos da sustentabilidade que exigem de líderes, mais que capacitação técnica, o compromisso ético e visão para antever oportunidades. Afinal somos a “floresta” e a “fazenda” da Terra.

Trecho de Floresta Amazônica, nos arredores de Porto Velho, Rondônia, não resiste
ao desmatamento pungente para criação de pastos de baixa produtividade.

Fotos: José Sabino/Natureza em Foco 

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José Sabino

Biólogo, doutor em Ecologia pela Unicamp e mestre em Zoologia pela Unesp. É professor e pesquisador da Universidade Anhanguera-Uniderp, onde coordena o Projeto Peixes de Bonito. Trabalha com comportamento animal e biodiversidade, além de dedicar especial atenção à divulgação e à compreensão pública da ciência. Desde 2000, vive no Mato Grosso do Sul – perto do Pantanal e de Bonito – com sua família e outros bichos