Natureza próxima

Alguns meses atrás fiz uma viagem em família que tinha como principal objetivo uma imersão a quatro na natureza remota do oeste norte-americano. E lá estávamos nós, caminhando numa trilha no meio do deserto de Mojave, nas profundezas do Parque Nacional Zion, em Utah, quando meu filho mais novo perguntou:

– Mãe, quando voltar para casa, a gente pode ir no CEMUCAM?.

Confesso que dei uma daquelas respostas automáticas que damos muitas vezes às crianças: “Claro filho, vamos sim”. Mas só conseguia pensar em como o menino poderia lembrar daquele parque de Cotia, em São Paulo (Centro Municipal de Campismo), cuja natureza é simples e ordinária diante das paisagens deslumbrantes e imponentes que se descortinavam à nossa frente.

Então, lembrei que meu filho praticamente aprendeu a andar naquele parque, que é o pedaço mais extenso de terra verde pública da região onde moramos. Durante seis meses, logo depois que ele completou dois anos, nosso programa matinal era deixar minha filha mais velha na escola e andar a pé até uma entrada secundária do CEMUCAM para, simplesmente, passear por lá: sem destino, sem planos. Muitas vezes só nós, algumas vezes na companhia de outra mãe e outro menino. Ao contrário de parques próximos às áreas mais adensadas, que mesmo durante a semana têm público, o CEMUCAM é completamente vazio nesses dias e, por isso, quase sempre tínhamos sua área só para nós.

E assim, nessas manhãs solitárias e descompromissadas, construímos, nós dois, muitas relações. A relação de amor e apreciação pela natureza que uma mãe compartilha com seu filho. A relação de afeto entre nós e esse parque, cuja paisagem rústica e despretensiosa passamos a apreciar com olhos de “donos”. E devagar, sem perceber, o CEMUCAM passou a ser o nosso parque. O parque que conhecemos com a intimidade de velhos amigos e do qual nos lembramos – meu filho primeiro –, mesmo quando estamos diante de outras paisagens, muito mais belas e mais impactantes.

Esse episódio ilustra com precisão o papel que a natureza próxima, aquela que acessamos sem muitos planos, sem muitas expectativas, tem no dia a dia, quando sobra uma tarde livre ou um sábado sem compromissos. É claro que poder passar algum tempo imerso num lugar como as áreas remotas do Parque Nacional Zion traz experiências únicas para as crianças – especialmente as que já têm idade para se lembrar – como o testemunho do ex-presidente Barack Obama atesta.

Já comentei um pouco o que penso sobre isso, também a partir de experiências pessoais, aqui, no Conexão Planeta. Mas o fato de o meu filho ter pedido novamente para ir ao CEMUCAM e constatar sua alegria ao percorrer com segurança e familiaridade o caminho que leva ao seu cantinho favorito do parque, me fizeram ver a beleza da relação afetiva que desenvolvemos com essas áreas que alguns chamam de natureza próxima.

Ele queria encontrar as duas árvores baixas que com seus galhos acolhem seu corpo de menino de cinco anos. Ele queria comer seu tradicional lanche na grama não aparada ao lado. Curioso também é o fato de que seu lugar favorito não é o parquinho, mas sim duas árvores perfeitas para subir, escalar e brincar. É claro que, ao longo dos muitos anos que frequento esse espaço com ele, já ouvi de um agente da segurança terceirizada que trabalha por lá que é proibido subir nas árvores… Mas este é assunto para outro artigo.

Hoje, quero expressar meu amor por esse parque que não tem nada de espetacular, não tem estruturas sofisticadas ou atrações imperdíveis, mas fica perto da minha casa e é o espaço de afeto do meu filho. Ele é a paisagem da sua infância. Não a paisagem em geral, mas aquele pedaço de terra que ele guardará para sempre em seu coração e será capaz de ver quando olhar para dentro de si, mesmo depois de ter conhecido muitas outras paisagens.

Como inúmeras áreas verdes públicas e privadas próximas aos grandes centros urbanos, o CEMUCAM corre muitos riscos: redução de área, abandono, construções e usos comerciais indevidos, depredação, lixo e violência. Precisamos reconhecer e valorizar cada uma dessas áreas humildes e meio acidentais, assim como valorizamos os parques urbanos mais estruturados e bem localizados, e preservá-las desses riscos. Pois é nessas áreas – um parque na periferia, uma praça descuidada, um terreno baldio no final da rua – que pode acontecer uma alquimia única: a conexão íntima de uma criança com um pedaço de chão qualquer e seu amor pela Terra.

Pedro da Cunha e Menezes, coordenador-geral de Uso Público e Negócios do ICMBio, também expressou muito bem o valor dessas áreas, aquelas que você tem que fazer força para gostar de verdade, mas que, no fundo, podem ser lugares de iniciação: a batalha pela preservação da Amazônia não será ganha no coração da floresta.

Afinal, como escreveu brilhantemente Robert Pyle em seu livro sobre Lições de uma Área Selvagem Urbana” – Thunder Tree – O que significa a extinção de um gavião para uma criança que nunca viu um sabiá? (As espécies originais citadas na obra são condor e wren)

O que significa um parque enorme e primitivo no coração do deserto para um menino que nunca amou sua natureza próxima?

Foto: Maria Isabel Amando de Barros/Arquivo Pessoal

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.