Não tem tempo para brincar?

Os gregos da Idade Antiga tinham várias palavras para designar o que hoje chamamos de “tempo”. Duas delas, Chrónos e Aión, formam uma boa oposição para entender o paradigma de temporalidade sob o qual vivemos em nossa sociedade ocidental.

Chrónos traz uma ideia de tempo ordenado, sucessivo e contínuo. É o tempo cronológico, dos nossos relógios e agendas, que separa claramente o passado, o presente e o futuro.

Já Aión nos sugere um tempo de intensidades, de caminhos da vida humana, um tempo não numerável nem sucessivo, mas que conversa com os momentos críticos e temporadas intensivas da nossa vida. O tempo aqui não é sentido como uma sucessão contínua de acontecimentos, mas como encantamentos que vivenciamos. Em um de seus fragmentos escritos, Heráclito, filósofo pré-socrático, define Aión como “uma criança que brinca, seu reino é o de uma criança“.

Neste mesmo entendimento, várias línguas do tronco banto, preponderantes na região da África subsahariana, não têm conjugações verbais claras para presente, passado e futuro. Os acontecimentos ordenam-se pelo contexto em que são contados – uma visão claramente mais aiônica do que cronológica de perceber a vida. O mesmo se dá em muitas de nossas línguas indígenas.

Consideramos o tempo – ou a falta dele – uma das principais barreiras para o brincar. Agendas cheias e muitas atividades nos fazem viver como o Coelho Branco da Alice no País das Maravilhas: relógio na mão e um constante “estou atrasado, estou atrasado!”. Mas essas barreiras têm brechas. É Aión se metendo no mundo que Chronos acha que é só dele. É o reino da criança invadindo nosso reino adulto. É o tempo humano invadindo o tempo do relógio.

Consideramos como perdido o tempo gasto no trânsito, na fila, no banho, no aguardo do jantar ou da consulta, e em tantos outros momentos. Mas é aí que moram as brechas. Esses tempinhos são um campo fértil para brincarmos – conosco e com os pequenos. Dá pra jogar, cantar, contar piada, fazer trava-língua, faz-de-conta e infinitas outras delícias. O exercício é substituir o estresse da espera pelo prazer de aproveitar o tempo de forma mais gostosa. Pausar Chronos e dar o palco a Aión.

São momentos de recuperar a criança que somos e também de observar, escutar as crianças de hoje. Quando meu filho menor tinha pouco mais de um mês de idade, eu presenciei o momento em que ele descobriu que tinha mão. Era hora do banho. Enquanto eu me preocupava com a temperatura da água e tentava garantir a sobrevivência do pequeno, consegui também observá-lo com profundidade.

Emocionante vê-lo mexer rusticamente os dedinhos, e aos poucos levar a mão a seu campo visual, percebendo que os movimentos que fazia refletiam em seu olhar. Foi um convite a redescobrir meu próprio corpo: escutar de novo meus sons internos, observar com atenção minha juntas, músculos e ossos, e me deixar espantar com o mistério de conseguirmos ordenar tudo isso junto.

Num tempo onde tudo está ordenado e sequenciado, há pouco lugar para transformações. Mas relacionar-se com Aión, ainda que somente em momentinhos de descuido, nos dá a possibilidade de transformar o mundo e a nós mesmos. Num tempo em que tudo é descoberta, movimento, tudo pode ser feito e construído, de novo e de novo.

Foto: Skimpton007/Pixabay

Um comentário em “Não tem tempo para brincar?

  • 12 de junho de 2018 em 6:34 PM
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    Crescer, ficar adulto é inexorável mas nada impede de continuarmos sendo crianças “apesar de”. Tempo e espaço será apenas ilusão de ótica se nos permitirmos alterá-los, condicionando-os à nossa motivação e enquadrando-os nos interesses verdadeiros que nos despertam atenção e foco para o melhor da vida, seja meditar por dez preciosos minutos, todas as manhãs, seja observando um novo dia chegar, clareando aos poucos, seja encontrando vozes ocultas no silêncio, abstraindo-nos dos ruídos e do barulho do mundo, por alguns minutos do dia, higienizando não apenas o corpo no banho diário mas a mente também, despojando-a dos elementos nocivos acumulados por nós próprios, de mágoa, ressentimentos e preocupações desnecessárias. O tempo de brincar, pode ser também o tempo de sermos reis e princesas de novo, super heróis ou simplesmente mães, diante da boneca que não fala nem ouve mas conseguimos conversar com ela acreditando que ela é de verdade, por isso ela é.

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Gabriel Limaverde

Filósofo e mestre em educação e ética, é especialista em gestão das diferenças. Viveu por mais de dez anos em Moçambique, onde trabalhou como educador e gestor de projetos educacionais. Participa do grupo de pesquisa do Território do Brincar. É também pai do Cauã e do Ipê, brincante, viageiro e quase careca