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Marussia Whately e sua luta para que todo brasileiro tenha acesso a água e saneamento

A ambientalista cresceu de frente para a represa de Guarapiranga, em São Paulo, assistindo ao processo de ocupação desordenada que antecipava as sucessivas crises da água pela qual a maior região metropolitana do país tem passado. A convivência com movimentos pela conservação do manancial a levou a trabalhar com a causa e a descobrir sua vocação de articuladora e de porta-voz capaz de traduzir questões técnicas para o público.

Por dez anos, Marussia coordenou o Programa Mananciais do ISA – Instituto Socioambiental, período em que foram produzidos diagnósticos e campanhas pela conservação das represas paulistas. O Abraço à Guarapiranga, por exemplo, se tornou um evento anual que une paulistanos em prol do cuidado com a água. Depois disso, a ativista ainda atuou na Amazônia, no Programa Municípios Verdes, parceria entre sociedade civil e governo do Pará para ajudar municípios a conter o desmatamento.

Com a grave seca de 2014 no Sudeste, Marussia voltou a São Paulo, onde articulou a Aliança pela Água, movimento que juntou mais de 60 organizações das áreas de meio ambiente, direitos do consumidor, direitos humanos, educação, ativismo e inovação para enfrentar o momento mais crítico de abastecimento na Região Metropolitana de São Paulo.

Acompanho de perto a trajetória de Marussia e trabalhamos juntas em vários momentos, como no ISA e no Municípios Verdes. Em 2016, escrevemos juntas o livro O Século da Escassez – Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios, para o selo Claro Enigma, da Companhia das Letras. Sua visão holística e seu conhecimento profundo a respeito das questões da água fazem dela uma referência importante no tema no país.

Nesta entrevista para o blog Mulheres Ativistas, no Conexão Planeta, ela conta sobre seu novo projeto, o recém-criado Instituto Água e Saneamento, cujo foco é aumentar o acesso a esgoto no país de forma mais rápida e beneficiando mais pessoas. “Essa é a questão mais desafiadora no Brasil nos próximos anos. A falta de saneamento é a maior privação de crianças e adolescentes brasileiros, entre os quais 25% não têm banheiro em casa ou vivem ao lado de uma vala de esgoto a céu aberto”, ressalta.

O que a fez despertar para a questão da água e como iniciou sua atuação pela causa?

Meus pais mudaram para uma casa às margens da represa de Guarapiranga, em São Paulo, quando eu tinha dois anos. Cresci brincando de pazinha na areia em frente à ela e velejando em suas águas. No final dos anos 1980, houve uma seca grande e começaram a aparecer algas na represa, o que chamou a atenção para as ocupações irregulares que aconteciam no entorno. Meu pai ajudou a criar um grupo voltado para a recuperação da Guarapiranga, formado por moradores e ativistas, como Mário Mantovani, da SOS Mata Atlântica – que era seu amigo e vivia lá em casa.

Eu era adolescente na época e acompanhava tudo de perto. Também gostava de cavalgar e conheci toda a região dos mananciais de São Paulo andando a cavalo. Queria ser veterinária, mas acabei fazendo arquitetura, por influência dos meus pais arquitetos. No segundo ano, porém, já sabia que não iria atuar naquela área.

Quando estava quase terminando a faculdade, em 1996, foi criado o Núcleo Pró-Guarapiranga, um projeto conjunto entre a SOS Mata Atlântica, o ISA e a Espaço, entre outras organizações, para elaboração do Diagnóstico Participativo da Bacia do Guarapiranga. Conheci o João Paulo Capobianco, do ISA, e comecei a trabalhar com ele na divulgação do diagnóstico na região e em ações pela recuperação da represa. Em 1999, ele me convidou para trabalhar com mananciais de São Paulo no Instituto, incluindo as regiões das represas de Guarapiranga e Billings.

Essa atuação me fez descobrir a vocação de falar ao microfone, ou seja, de traduzir dados técnicos para as pessoas. Em 2003, virei coordenadora do Programa Mananciais, a coordenadora mais jovem do ISA.

O que esse programa significou para a temática dos mananciais de São Paulo?

Realizamos um seminário como preparação para o diagnóstico da represa Billings e o trabalho começou a ganhar reconhecimento, tanto que incluímos, também, os mananciais do Sistema Cantareira. Foi um momento difícil pessoalmente, com a morte do meu irmão, em 2003, e da minha mãe, um ano depois. Comecei a fazer mestrado na Universidade de São Paulo e desisti. Me dediquei totalmente ao trabalho e foi desafiador. Em 2004, outro período seco afetou a represa de Guarapiranga. Dei entrevistas na época dizendo que, em dez anos, São Paulo teria sérios problemas de água, o que efetivamente aconteceu.

Ao longo dos anos posteriores, fizemos parcerias com a Prefeitura de São Paulo e com o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (Pnuma) que deram impulso à atuação com mananciais. Fizemos diagnósticos, trabalhamos junto aos subcomitês de bacias, avançamos na produção de conhecimento e o tema ganhou importância.

Em 2007, lançamos a campanha De Olho nos Mananciais de São Paulo, que teve o apoio da modelo Gisele Bündchen, quando trouxemos a questão de moradia na região de mananciais, a biodiversidade local e viabilizamos uma grande frente de mobilização. Tínhamos uma equipe de 15 pessoas e conseguimos trabalhar com comunicação pública de temas técnicos, como nas discussões sobre o Rodoanel Sul.

O programa tinha uma face muito pública, viramos referência na questão de mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. Criamos o Abraço à Guarapiranga, evento anual que envolve várias organizações e o público para lembrar que precisamos cuidar da nossa água e acontece até hoje, tocado pela ONG Espaço. Em 2009, porém, o programa acabou por falta de financiador, o que representou um desgaste muito grande. Sai do ISA depois de dez anos na organização e quis dar um tempo no tema água.

Foi nesse momento que você trabalhou com Marina Silva?

Sim. Um grupo, que incluía a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estava criando o Instituto Democracia e Sustentabilidade e fui ajudar a estruturar a organização, o que representava uma mudança grande na minha atuação, já que incluía muitos outros temas. Mas, quando Marina saiu candidata à presidência, trabalhei na campanha com produção de conteúdo, um trabalho intenso.

Até então, não tinha tido contato com a Amazônia, mas após a campanha, no final de 2010, fiz uma viagem de 40 dias para a região. Quando voltei, resolvi que queria atuar com esse tema.

Conte sobre sua experiência na Amazônia.

Mudei para Belém e fui trabalhar em um projeto da Aliança pelo Clima e Uso da Terra (CLUA) e Imazon para construir o Programa Municípios Verdes junto com a Secretaria Especial do Programa Municípios Verdes do governo do Pará. Atuávamos próximos às administrações municipais e, já naquela época, acreditava que o protagonismo local poderia dar mais resultados.

Permaneci lá por mais de dois anos para ajudar a desenvolver uma ação piloto em dez municípios para ações de combate ao desmatamento e a elaborar um projeto para o Fundo Amazônia para o programa.

Por que voltou a São Paulo?

Meu plano era voltar no final de 2014, mas no início do ano comecei a ver que a situação dos mananciais de São Paulo estava ficando crítica. Retomei conversas com a rede de pessoas que atuava na área e falava que a situação era grave. Isso acabou antecipando minha volta, mais uma vez por meio do ISA, que bancou a ideia de construir uma rede para acompanhar o problema. Em agosto, conheci a Associação Bem-te-vi Diversidade, que tinha interesse na questão macro da água e na solução local para água e esgoto.

Começamos ali uma parceria que continua até hoje. Começamos a idealizar a Aliança pela Água, lançada em outubro como uma articulação de organizações para o enfrentamento da grave crise da água que se apresentava. Foi tudo muito rápido, como pedia a ocasião.

O principal papel da Aliança foi trazer a público a narrativa de que a crise da água não era um problema pontual, de falta de chuva, mas um conjunto de motivos, que unia um evento climático extremo à falta de planejamento do poder público. Virei porta-voz do movimento. Articulamos diferentes atores. Foi um momento que juntou os fatores mais fortes do meu ativismo, que são um tema pelo qual sou apaixonada e minha capacidade de articular pessoas para fazer coisas juntas.

Embora tenha tido um grande protagonismo durante a crise da água em São Paulo, a Aliança pela Água perdeu força quando voltou a chover. Qual o legado dessa experiência?

Fizemos coisas inovadoras com a Aliança, como permitir que cada organização participante passasse a saber o que os demais estavam fazendo e juntassem os esforços em atividades ‘em nome da Aliança pela Água’, ampliando as ações. Essa articulação propiciou que surgissem novos ativistas, que passaram a ter visibilidade. Era um coletivo acolhedor, que uniu organizações recém-criadas às mais importantes entidades ambientalistas do país.

Depois do momento crítico da crise, partimos para um processo de mapear as lições aprendidas, incluindo a realização de estudos, entre eles um sobre governança da água e outro sobre o papel dos municípios para a segurança hídrica. Todo esse acerto continua disponível.

Em 2016, criamos a campanha Vote pela Água, na qual propusemos um projeto de lei assumido por quase 150 candidatos à prefeitura no país. O maior resultado desse processo foi a aprovação da Lei Municipal de Segurança Hídrica do município de São Paulo, sancionada em 2019. Pessoalmente, foi uma experiência de ativismo menos institucional e mais em rede, com uma quantidade de mulheres liderando muito maior do que em minhas experiências anteriores.

A criação do Instituto Água e Saneamento partiu dessa experiência?

A Aliança pela Água me trouxe muita exposição entre 2014 e 2017, por isso quis ficar mais reclusa e me aproximar de outras formas de trabalho. Tive a oportunidade de fazer conexão com outros movimentos ligados à iniciativa privada, como o Instituto Coca Cola e a Moda pela Água, formada por uma série de empresas do setor.

Com a Associação Bem-te-vi Diversidade, trabalhei em um projeto em parceria com a ASA, por meio do qual conseguimos, em um ano, levar o acesso à água com cisternas a quase 100% das escolas rurais e esgoto a 20% no município de Barra, às margens dos rios São Francisco e Grande na Bahia. Isso me aproximou de projetos de campo.

Essas experiências levaram à discussão do embrião do que seria o Instituto Água e Saneamento, criado em 2019. Nosso objetivo é pensar em como fazer o acesso ao esgoto no país chegar a mais pessoas e de forma mais rápida. A ideia é trabalhar com municípios. Em 2020, devo voltar à ativa na militância quando começarmos os projetos.

Por que o saneamento básico, principalmente o esgoto, é tão importante?

Essa é a questão mais desafiadora no Brasil nos próximos anos. Mesmo que seja um tema sobre o qual conheçamos pouco – cada fonte dá um placar diferente -, sabemos que grande parte dos brasileiros não tem acesso ao saneamento básico, nem vislumbra ter. No ritmo atual, estamos falando de, pelo menos, uma ou duas gerações no país ainda com o ‘pé na m….’.

Segundo levantamento da Unicef, de 2018, para 25% das crianças e dos adolescentes brasileiros – que são cerca de 14 milhões de pessoas -, a falta de saneamento é a principal privação. Esse índice é o dobro, por exemplo, dos que não têm acesso à educação. E não estamos falando de quem não tem acesso à rede de esgoto, mas somente dos que moram em casa sem banheiro ou ao lado de uma vala de esgoto a céu aberto.

Há uma enorme desarticulação das políticas ligadas a saneamento. As soluções sempre são voltadas a mudar a lei e não em fazer política pública. Quem mora em favelas, ocupações e municípios rurais nunca é visto ou incluído nos programas. Nossa missão é mostrar o tamanho real e a urgência do problema, principalmente à medida que aumentam as mudanças climáticas, que tornam os sistemas mais vulneráveis.

Um clima menos amigo traz mais urgência ao tema, e os projetos que temos estão em descompasso com esse nível de risco. Precisamos de soluções mais rápidas e descentralizadas.

Como você vê o momento atual para quem trabalha com ativismo?

É um momento infeliz de inversão de valores, que dá tristeza e desânimo, sobretudo ver pessoas com histórico incrível sendo desacreditadas e perseguidas pela milícia digital. Por outro lado, há toda uma geração mais nova, abaixo dos trinta anos, que vem com outra visão e forma de agir. Tenho trabalhado com alguns deles e isso me dá esperança.

Foto: Ecoera

Edição: Mônica Nunes

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