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Livia Almendary aposta no poder do cinema brasileiro como forma de mobilização social

O primeiro trabalho da jornalista e historiadora Livia Almendary na área de mobilização por meio do cinema foi com o documentário Elena, de Petra Costa, finalista do Oscar 2020. Ao perceber a força do audiovisual como mote da construção de narrativas e debate de ideias, foi uma das criadoras da Taturana, empresa social que mobiliza e distribui filmes brasileiros, em circuitos que incluem escolas, universidades, cineclubes, equipamentos públicos, com exibições seguidas de debates que ampliem o que foi discutido no filme.

Em uma época onde quase tudo é mediado por imagens, Livia defende que é preciso ampliar o poder de histórias que busquem um mundo mais justo e viável. Temas relacionados a gênero, racismo, juventude, meio ambiente e populações indígenas habitam os documentários distribuídos pela Taturana, que prioriza ainda filmes produzidos por mulheres.

Tive o privilégio de trabalhar com Livia em várias ocasiões, desde muito antes do cinema entrar em sua vida, em projetos relacionados a comunicação e meio ambiente, e testemunhei seu engajamento e inquietação. Hoje, atua para que vozes que representam a diversidade do país – jovens, mulheres, negros, indígenas – sejam ampliadas por meio desse poderoso fabricante de imaginários e desejos que é o inema. “Quando começamos, acreditávamos que ocupávamos um espaço de construção. Agora nos vemos como resistência nesse ambiente mais amplo, contra a censura e o desmonte das políticas de cultura”, disse ao blog Mulheres Ativistas do Conexão Planeta.

Qual foi a motivação que a levou a optar por trabalhos com visão social?

Fiz Jornalismo na PUC, uma universidade privada, mas com um compromisso social forte, e História na Universidade de São Paulo (USP). Nessa fase, me dei conta de que a maior parte dos meus colegas nas duas faculdades eram de classe média branca e que estávamos lá por conta dos inúmeros privilégios que tivemos. Percebi que não poderia ser feliz e completa sem me responsabilizar por meus privilégios.

Comecei a trabalhar com comunicação e meio ambiente, mas durante os estágios para a licenciatura de História conheci a escola pública e vi como os privilégios funcionam. Me deparei com o fato de que ter um quarto da população analfabeta funcional dificultava a luta por direitos. Era o início dos anos 2000 e as discussões sobre cotas entravam na pauta.  

O que fez você se interessar por audiovisual como instrumento de mobilização?

Tinha cerca de 25 anos quando comecei a lecionar em um cursinho popular, que preparava alunos de escolas públicas para ingressar também em universidades públicas que, historicamente, são um gargalo elitista. Felizmente, no final do ano passado, esse placar começou a mudar por conta das políticas afirmativas dos últimos anos.

Ao dar aulas de redação, percebi que entender um texto e poder criar narrativas é o que dá capacidade de articulação para as pessoas. Nas minhas aulas, iniciava o curso com a apresentação de documentários de curta-metragem, para que vissem como construir narrações. Foi o jeito que encontrei para tirar o medo que os alunos tinham do texto, como se a letra escrita fosse de difícil acesso.

Comecei também a desenvolver interesse pela América Latina e a questionar porque conhecemos mais sobre Europa e Estados Unidos, enquanto não sabemos quase nada sobre nossos vizinhos que têm histórias parecidas com as nossas.

Isso me levou a iniciar um mestrado em Buenos Aires, na Argentina, onde morei entre 2009 e 2013 e trabalhei com educação popular de jovens e adultos mais uma vez a partir da construção de narrativas e textos e ensinando português como forma de resistência. Acabei desistindo do mestrado para me dedicar a esse trabalho de campo. Para me manter, fazia free lancers na área editorial. Quando voltei ao Brasil, a vida me levou quase por acaso para a área de cinema.

Como esse acaso se deu? Como criou a Taturana?

Assim que voltei, fui interpelada pela cineasta Petra Costa, que tinha acabado de produzir o documentário Elena (baseado na vida de sua irmã, a atriz Elena Andrade). Ela havia ganho um prêmio para fazer um trabalho de desenvolvimento social com o filme concomitantemente ao lançamento nos cinemas. Na época, ainda se falava pouco de impacto social e cinema e vimos, ali, uma oportunidade para que o filme fosse motivo de discussão sobre saúde mental, gênero e juventude.

Convidei a Carol Misorelli, que se tornou minha sócia, e fizemos um trabalho para que o documentário circulasse e mobilizasse a área de saúde mental, gênero e juventude, tornando o filme uma ferramenta de debate a partir desse veículo privilegiado que é o cinema. A partir dessa experiência, entendemos a potência que filmes documentais podem ter em temas relevantes, tabus ou difíceis de ser abordados, e até para militância.

Por outro lado, era um momento em que os documentários brasileiros estavam em ampla expansão. Quase metade da produção brasileira de cinema lançada nas salas é documentário. Essa foi a semente da Taturana. Percebemos que faria sentido a existência de uma empresa para promover esses filmes e criar público para essa linguagem, que precisava de espaços para entrar me outros mercados.

O que faz e como funciona a empresa?

Eu e Carol criamos a Taturana como um negócio social, setor 2.5, no qual todo o lucro é reinvestido na própria empresa. Entre 2013 e 2018, trabalhamos para conseguir locais de exibição e construir impacto social para filmes, a maior parte documentários. Isso porque não é fácil conseguir espaço, já que os cinemas comerciais são voltados para os blockbusters.

Em 2018, percebemos que, se fôssemos também distribuidores, poderíamos aumentar ainda mais o impacto. Deste então, somos mobilizadores e distribuidores, uma perspectiva integral, que vai do lançamento no cinema, ao licenciamento para TV até o debate de ideias. Temos uma rede de exibidores parceiros formada por escolas, universidades, cineclubes, centros culturais, equipamentos públicos, coletivos e movimentos sociais.

Quando começamos a mobilizar, percebemos que essas redes de debates se transformariam em redes exibidoras. Trabalhamos com documentários sobre meio ambiente, questões indígenas, de gênero, sistema judiciários, entre outros. Procuramos as janelas de mercado e sua rede exibidora, normalmente aberta ao público. Somos como um vídeo on demand em uma plataformas digital para organização de exibições off-line coletivas e com debates.

Nosso objetivo é construir narrativas para termos um mundo mais justo e mais viável. Como quase tudo hoje é mediado por imagens, usamos o cinema como ferramenta. A Taturana é uma empresa que gira no azul, o difícil é remunerar nosso trabalho adequadamente, o que me obriga a ainda fazer trabalhos paralelos, como tradução e edição de publicações. Mas a vontade de continuar permanece porque consideramos que a possibilidade de debater ideias é fundamental para o mundo de hoje.

Como é, para uma empresa tocada por duas mulheres, atuar na área audiovisual no Brasil?

O mercado audiovisual é muito masculino. Na maior parte da indústria, os cargos de mais prestígio são ocupados por homens brancos, de classe média alta. Isso gera dificuldade de interlocução, de construir um lugar de legitimidade. Nos faz pensar em como o cinema é forte, mas também precisa ser repensado. Dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) mostram que, em 2016, não houve nenhum filme dirigido por uma mulher negra no país. Além disso, a maior parte das empresas está localizada no Sudeste. Por isso, é preciso repensar sobre onde, quem produz e de que perspectiva estamos contando histórias.

Na Taturana, procuramos focar em mais produções de mulheres, e assim é a maior parte dos filmes com os quais trabalhamos nos últimos anos, incluindo alguns produzidos por mulheres negras. Além da nossa militância sobre o impacto do cinema, também passa por nossas escolhas a diversidade do filme, quem dirige, quais os temas abordados.

Desde que começaram, aconteceram mudanças importantes no cenário?

Sim, muita coisa mudou. A diversidade cresceu e, hoje, vemos mais pessoas do movimento negro ou cineastas indígenas atuando. Por outro lado, não é à toa que, com o recrudescimento do discurso conservador e de direita, o audiovisual e a cultura estejam entre os primeiros a sofrer ataques no governo Bolsonaro: o Ministério da Cultura foi extinto e a Ancine está praticamente parada.

A Taturana foi criada em um momento no qual a diversidade e as lutas sociais (negras, indígenas, femininas, de juventude e cultura) gerou um lugar de ocupação, que a direita conservadora encara como se fosse ideologia.

Quando se tem um ex-secretário de Cultura como o Roberto Alvim com um discurso parodiando Goebbels, fica claro o quanto o governo não quer narrativas que prezem a diversidade. Quando começamos, acreditávamos que ocupávamos um espaço de construção. Agora, nos vemos como resistência, nesse ambiente mais amplo, contra a censura e o desmonte das políticas de cultura. Com o meio ambiente, acontece a mesma coisa, também é um espaço que dá voz a populações como as indígenas. Por isso também está sob ataque.

Por que escolheu estudar a relação dos jovens com o audiovisual?

Resolvi retomar o mestrado para estudar a relação da juventude com o audiovisual, por constatar que muitos jovens em situação de marginalização – periféricos, trans e negros, por exemplo – se aproximaram dessa ferramenta. Muitos filmes trabalhados pela Taturana tiveram participação de jovens.

Hoje, por meio da democratização da tecnologia, suas vozes têm lugar social, eles mesmos constroem suas narrativas, muitas vezes para sobreviver. Negros dizem que vidas negras importam e estamos escutando. O audiovisual tem um papel político em vários setores da juventude.

Edição: Mônica Nunes

Foto: Rodrigo Gontijo

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