Incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro expõe descaso com a cultura e a memória do país

O incêndio que ‘devorou’ o maior museu de história natural e antropológica da América Latina e a mais antiga instituição científica do Brasil – localizado na Quinta da Boa Vista, São Cristovão, zona norte no Rio de Janeiro – é o mais perfeito retrato do abandono ao qual este governo tem submetido a cultura e a educação. O cuidado com esse patrimônio precioso nunca foi perfeito, é fato, mas, em menos de dois anos, o governo Temer reduziu os recursos anuais para o Museu Nacional do Rio de Janeiro criado por D. João VI (Museu Real) e que abrigou a família real portuguesa e a 1a. Assembleia Constituinte -, de R$ 451 milhões para R$ 51 milhões (veja o gráfico abaixo).

Reportagem da Folha de São Paulo, de maio deste ano, denunciou problemas com sua manutenção e as estratégias da direção para obter apoio financeiro da população, inclusive por meio de financiamento coletivo. Sem condições para manter seu rico acervo em bom estado de conservação – mais de 20 milhões de itens, entre múmias, fósseis, meteoritos, insetos… – há muito tempo que o museu exibia apenas 1% do seu acervo. Ou menos.

Desde 1964, subordinado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foram inúmeras as solicitações de sua administração ao governo federal e ao BNDEs para obter verba para reformar o prédio e conservar o acervo. Agora, só restam as cinzas dos mais relevantes registros da memória brasileira nas áreas de ciências sociais e antropológicas, reunidos em 200 anos, completados no mês de junho.

Podemos ter perdido para sempre cerca de 10 mil itens de peças arqueológicas; o mais antigo fóssil humano encontrado no país, conhecido por Luiza; a coleção egípcia iniciada com o imperador Dom Pedro I e ampliada por seu filho, Dom Pedro II; a maior coleção de paleontologia da América Latina, com destaque para o dinossauro proveniente de Minas Gerais (Maxakalisaurus topai); afrescos da antiga Pompeia, devastada pelas cinzas do vulcão Vesúvio; cerca de 90 mil itens produzidos pelos povos indígenas brasileiros e também por Maias, Astecas e Incasuma das maiores coleções de livros sobre ciências naturais do mundo, com quase 500 mil volumes. Só pra citar algumas de suas obras mais conhecidas e de valor inestimável.

Boa parte dessa riqueza cultural, científica e histórica – que naturalistas, historiadores, arqueólogos e antropólogos, etnólogos, paleontólogos, linguistas e outros pesquisadores também ajudaram a reunir – ardeu, sob os olhos atônitos dos brasileiros e do mundo.

A direção do museu e os bombeiros ainda estão cautelosos para divulgar o que sobreviveu às labaredas. Mas já divulgaram que o meteorito Bendegó, que pesa cinco toneladas, ficou intacto já que suporta temperaturas elevadas. As pesquisas realizadas a partir dele, se perderam com a biblioteca. Os fósseis também podem estar entre os itens sobreviventes porque não queimam, no entanto, também podem ter sido destruídos pela queda de telhados e paredes.

O fogo começou às 19h30, mais ou menos, e se alastrou rapidamente. De acordo com o noticiário, em seu interior só estavam quatro vigias que conseguiram sair a tempo, portanto, não há vítimas. Mas o combate efetivo ao incêndio demorou porque o Corpo de Bombeiros teve dificuldades para puxar água até o local e encontrou hidrantes sem carga. Bizarro!

Pesquisadores e funcionários do museu também estiveram presentes no local para orientar os bombeiros a tentar impedir que o fogo se alastrasse até a área que abriga produtos químicos e inflamáveis usados na conservação de animais raros. Mas não só: como contou o site UOL, alguns cientistas e técnicos se juntaram e se embrenharam por “salas escuras e enfumaçadas para tentar resgatar o que fosse possível”. Paulo Buckup foi um deles. Junto com alguns colegas, ele “arrombou portas de gabinetes e levou gavetas com espécies de moluscos”  – pequena parte de um inventário de dezenas de espécies da fauna sulamericana. Incrível!

Tudo ainda vai ser investigado, claro. Também a possibilidade de ter sido crime, mas creio que disso não há qualquer dúvida, não? Se não houve má fé, nem a ação humana in loco para que a tragédia acontecesse, a redução drástica de recursos com o governo Temer já era uma declaração de morte à instituição. Portanto, é desprezível a declaração de Temer proferida ontem, por meio de nota.

“Incalculável para o Brasil a perda do acervo do Museu Nacional. Hoje é um dia trágico para a museologia de nosso país. Foram perdidos duzentos anos de trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para nossa história não se pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante o Império. É um dia triste para todos os brasileiros”.

Cínico. Suas políticas de austeridade estão destruindo o futuro e o passado do Brasil. O Museu Nacional do Rio de Janeiro era o quinto maior do mundo em peças catalogadas!

As atuais e as futuras gerações estão, agora, impedidas de apreciar e de sorver o conhecimento abrigado por um dos museus mais belos e ricos do Brasil.

Um país que não cuida do seu passado, não pode criar um presente bem alicerçado, justo e humano, nem vislumbrar o futuro. Espero que a indignação provocada por esta tragédia – além de todas as que vemos pelas ruas diariamente e conhecemos pelos noticiários e pelas redes sociais – criem um sentimento de inconformismo coletivo que nos ajude a fazer a melhor escolha nas próximas eleições. Mas não só: que ajude a criar consciência cidadã para que os brasileiros sejam atuantes na vida política do país. Só assim será possível evitar novas tragédias, de qualquer ordem.

Indignação nas redes sociais

A comoção pelas redes sociais foi enorme. Ontem à noite, elas rapidamente foram tomadas por fotos e vídeos do incêndio, e também por memes de LUTO pela morte do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Mais: relatos e artigos indignados também foram (e estão sendo) publicados e compartilhados. Vale ler! Revelam outros pontos de vista, mais informações e mantêm vivo o sentimento de revolta que deve pautar nossa presença na vida pública. Logo, logo, os aproveitadores de plantão vai começar a dizer que o ideal é privatizar todas as instituições públicas.

Abaixo, reproduzo alguns dos posts que me chamaram a atenção e creio que enriquecem o debate.

Também divulgo uma pequena mobilização dos estudantes do curso de museologia da UniRio, que querem “preservar a memória” do Museu Nacional. Eles estão solicitando imagens (fotos, vídeos e selfies) do acervo, produzidas em seus espaços expositivos pelos visitantes. Quem quiser participar, deve enviar as suas ara thg.museo@gmail.com

Agora, vamos aos textos:

VALTER HUGO MÃE
escritor português

“acordo com a insuportável notícia da destruição do magnífico museu nacional do brasil, que é da ordem do absurdo. 

como pode ser descurada uma casa daquelas? uma casa que definia o brasil, definia a história do brasil.

o museu nacional não pode arder. só em tempo de guerra, no grotesco que a guerra pode ser, coisas assim acontecem. fico com a impressão de que o brasil está em guerra consigo mesmo.

meu abraço solidário a todos os que prestigiam o brasil e a sua cultura, e a todas as gerações futuras que se vêem impedidas de aceder ao melhor do seu próprio patrimônio e tanta da sua memória. 

estou horrorizado”.

IVANA BENTES
professora e pesquisadora na UFRJ

“Que tragédia! A história do Brasil queimando! 20 milhões de peças e documentos destruídos! Museu Nacional da UFRJ queimando inteiro, séculos de arqueologia, peças, esqueletos, cultura indígena, fauna, flora, tudo! Camadas de tempo e de história e conhecimento.

200 anos de documentos, toda a história do império queimado, paleontologia, antropologia do Brasil. Prédios históricos, tombados, estão sendo destruídos, muitos deles dentro dos quais damos aulas, pesquisamos, orientamos. 

Essa precariedade não é descaso da UFRJ. Não existe política pública para manter e conservar nosso patrimônio. É o mesmo descaso com o patrimônio, a pesquisa, a ciência e tudo que é PÚBLICO.

O Museu sobrevive com o mínimo de recursos do Estado. O público fazia vaquinha para ajudar na manutenção! São incêndios e tragédias que não são ainda mais frequentes não sabemos porquê. Na adversidade vivemos e as universidades fazem muito e muitíssimo com muito pouco. Damos aulas em palácios, castelos, museus, hospícios históricos…

O MAM queimou, o acervo de Hélio Oiticica queimou, a Cinemateca Brasileira pegou fogo, o Museu da Língua Portuguesa queimou! É muita falta de amor ao Brasil e à sua cultura exuberante.

Às vezes, as metáforas se tornam literais. Um Brasil que está dando as costas para sua história e para seu futuro, queimando tudo o que prezamos! Imagem não de um acidente, mas da barbárie!

É essa a política que está destruindo o país: Estado mínimo, plataformas privatizantes, odiadoresda cultura, politicas de desinvestimento no comum! #MuseuNacional #UFRJ

P.S.E não venham dizer que a culpa é da UFRJ! Patrimônio público precisa de recurso e investimento público. Se o Museu não fosse um lugar de pesquisa já teria acabado, fechado, faz tempo”.

ALEXANDRE FORTES
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação UFRRJ

“Na guerra, não há tempo para chorar.

Estamos assistindo à destruição do maior e mais importante acervo científico do país e os golpistas já estão querendo responsabilizar a UFRJ pela tragédia de hoje.

O Museu Nacional do Rio de Janeiro, além de tudo que significava como patrimônio e como instituição de pesquisa, era o ponto natural de concentração das Marchas pela Ciência, o berço ao qual sempre regressava nossa maltratada e aguerrida comunidade científica. O porto seguro de todos que teimam em acreditar que esse país pode ser soberano e usar nossa imensa capacidade de produção de conhecimento para oferecer uma vida digna ao seu povo.

A perda é imensurável e irreparável. É verdade que ela expõe nossa incapacidade de fazer investimentos estruturais, mesmo nos momentos favoráveis.Mas, acima de tudo, escancara o caráter criminoso das políticas de “austeridade” transformadas em emenda constitucional. Para que nunca mais se repita a “aventura” de gastar com educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia. Especialmente depois que se comprovou que esses gastos podem fazer a economia girar em favor do desenvolvimento e da redução da desigualdade.

Um país que deixa de vacinar suas crianças, que assiste ao crescimento da mortalidade infantil, que assassina 60 mil pessoas por ano, que vai colocar um psicopata imbecil que ensina crianças de colo a atirar no segundo turno, vai por acaso investir em cultura e ciência?
A gente séria e responsável do país certamente ficará aliviada de continuar a visitar o Louvre, o Metropolitan e o British Museum sabendo que a gentalha não terá mais nem o gostinho de ver uma múmia ou um dinossauro por oito reais num lindo espaço público da Zona Norte do Rio de Janeiro.

E o aparato político, midiático, policial e judiciário golpista já dá todos os sinais de que vai se apropriar dessa calamidade para lançar uma nova ofensiva contra as instituições públicas de ciência e tecnologia, seus servidores e dirigentes”.

RENATO JANINE RIBEIRO
professor de filosofia, cientista político, escritor e colunista

“Mariana e o Museu Nacional, dois resultados de descaso. A negligência pode trazer efeitos devastadores. Destruiu-se a natureza em 2015, a cultura em 2018.

Poderiam nunca ter acontecido. Mas a gota d’água ou a faísca apenas destruíram o que estava descuidado.

O Brasil precisa mudar, urgentemente. Não dá para falar em fatalidade. Precisamos cuidar antes, a tempo, do que é precioso”.

THIAGO MEDAGLIA
Jornlista, Ambiental Media

“Há uma fratura no coração do Brasil: somos um país dissociado do subjetivo, do sutil, daquilo que não necessariamente é concreto e imediato a partir da visão dominante – e não por isso menos fundamental. Não há espaço para a arte, a natureza, a ciência, os modos de vida tradicionais, a cultura e a diversidade.

Avançam, com estímulos, as armas, a interpretação literal do Velho Testamento, os lucros do agronegócio, os salários do Judiciário, os heróis e os bandidos.

Arde em chamas o #MuseuNacional. Esfumaça nossa alma”.

RENATO PAIVA GUIMARÃES
Jornalista, diretor de comunicação do Greenpeace Brasil e colaborador do Conexão Planeta

“O Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no RJ, está se consumindo em chamas. Toda vez que uma biblioteca ou um museu se perde desta forma, sinto uma dor na alma. Uma dor pela memoria consumida pelas chamas e que não poderá ser recuperada.

É a morte definitiva. É o retrato do Brasil neste momento. Uma tragédia que representa o horror que vive o Rio de Janeiro e que vive o Brasil.

Um choro que mata a alma”.

LEANDRO BEGOUCCI
Jornalista
“A manutenção do Museu Nacional no Rio custava, por ano, menos que um juiz do Supremo. Ele precisava de 520 mil reais para se manter, mas não recebia verbas integrais desde 2014.

Museu não tem lobby, não tem bancada, não tem mídia, não tem partido… Agora é tarde: arde em chamas!”.

 

Fonte: Folha de São Paulo, G1, UOL

Foto: Reprodução TV e Divulgação Museu Nacional

Um comentário em “Incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro expõe descaso com a cultura e a memória do país

  • 3 de setembro de 2018 em 7:26 PM
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    Realmente uma grande, monumental e lastimável perda, mas não IRREPARÁVEL. Irreparável são as perdas de vidas humanas por falta de socorro médico nos hospitais públicos, seja por descaso, negligência, incompetência, desvio de verba ou qualquer outro motivo injustificável. Bebês que morrem por falta de atendimento nos Postos de Saúde são uma perda irreparável, porque não voltam. Idosos que estão perto do seu dia de morrer mas nem por isso devem ser deixados à míngua nos corredores dos Hospitais, porque não há vaga para eles morrerem em paz e sem dor, isso é irreparável. Assim como o ser humano vegetando numa fila por oito anos à espera angustiante de uma “cirurgia de emergência para ontem” mas sempre adiada para, ninguém sabe, quando. Deveria ser, mas não é prioridade uma mãe desesperada com seu filho ardendo em febre precisar esperar cinco horas para ser atendida em cinco minutos, mal e porcamente, por falta de tempo do distinto profissional de saúde (ou de doença?). Múmias, fósseis,documentos históricos e dinossauros são importantes, é inquestionável, mas precisando escolher entre reformar um Museu, uma Igreja ou um Hospital, o óbvio ululante é onde nosso pai, mãe ou filho precisará, quem sabe hoje ou amanhã, ser atendido, respeitado, acolhido, ouvido com atenção, medicado com eficiência e jamais ser mandado de volta para casa porque sua dor não é prioridade comparada com outras que doem mais. Num país subdesenvolvido como o nosso, igrejas e museus podem esperar para ser restaurados e reformados, mas ninguém quer morrer antes da hora por falta de médico ou da equipe de enfermagem porque não pagaram seu salário. O maior patrimônio de uma nação não são itens de um Museu, por mais inestimáveis sejam, são o SEU POVO, por mais sofrido e desalentado se mostre diante do caos que testemunha todos os dias quando sofre a fome de atenção e a sede de atendimento, comendo o pão que o diabo amassou porque não tem outro. Pessoas são o futuro de um país que, mesmo despojado das peças importantes, históricas e preciosas de vitrines e mostruários, possui o maior tesouro nas jóias vivas que andam, falam, pensam, respiram e são capazes de amar, compreender, auxiliar, compartilhando emoções e sentimentos com outras PESSOAS insubstituíveis, ainda que despojadas de cetros, tronos e coroas, as valiosas PESSOAS. Nenhum dinossauro, meteoro, sarcófago, urna funerária, esqueleto ou múmia se compara à beleza e importância de qualquer uma delas ou vale tanto quanto elas valem. Insubstituíveis. Ainda podemos salva-las: todas as Luzias que amam, riem, rezam, choram, abraçam e beijam agradecendo a Deus por estarem vivas, VIVAS!

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Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.