Houston paga com Harvey o que deve à ciência

Ao contrário dos tubarões que estariam soltos nas ruas inundadas da texana Houston, há dois fatores muito reais (e graves) na intensificação da tragédia causada pelo furacão Harvey nas últimas semanas: o negacionismo climático e uma política de desenvolvimento urbano sem controle e sem foco em resiliência. E não se engane pela distância entre o Texas e qualquer outra cidade brasileira que, entra ano e sai ano, se vê devastada por enchentes: o que aconteceu por lá é muito mais próximo da nossa realidade do que alguns gostariam de admitir.

Para saber do que estou falando, é preciso entender que Harvey não foi o primeiro evento climático extremo a assolar Houston nos últimos três anos. Na verdade, ele vem na sequência de outras três grandes tempestades na área metropolitana, uma em maio de 2015 e duas, um ano depois, em abril e maio de 2016. Juntas, elas causaram a morte de 16 pessoas e danos calculados em mais de US$ 1 bilhão por conta de enchentes. Menores, sim, mas não menos problemáticas que o ciclone tropical deste ano, que tomou 60 vidas, gerou estragos na ordem de US$ 55 bilhões e deixou 30 mil habitantes desabrigados, inclusive incapacitando um quarto da capacidade de refino de petróleo dos EUA – ironicamente, uma indústria de imenso interesse para quem promove um ceticismo vulgar quanto às mudanças climáticas.

Os impactos sociais e econômicos de Harvey na quarta maior cidade norte-americana já são piores que os dos furacões Katrina (2005) e Sandy (2012), embora entidades civis e autoridades governamentais, na esfera de influência do presidente Donald Trump, se recusem a aceitar publicamente a relação racional e científica entre o aquecimento global e a frequência cada vez mais alta de fenômenos climáticos graves que atingem os EUA e o mundo. Tão orgulhoso da sua capacidade de gestão e experiência como empresário no ramo imobiliário, Trump poderia ver que ignorar isso é um péssimo negócio.

A questão climática

Como prova deste novo padrão climático, mais quente e frequente em extremos, o próprio Texas, colégio eleitoral conquistado por ele, é um ótimo estudo de caso. De 2016 até agora, o a região do estado foi cenário para quatro dos 15 desastres naturais de “dar bilhão em danos estimados no país, de acordo com dados da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA). Para efeito de comparação, em 2011, foram oito de 16, entre enchentes, furacões, ondas de calor e incêndios florestais de grandes proporções. Desde 2012, Houston tem quebrado sucessivamente recordes de temperatura em seus verões, registrando calor acima de 42 graus Celsius. “Mais pessoas morrem e mais propriedade per capita é perdida aqui do que em qualquer outro lugar por conta do clima. O problema só tende a piorar”, afirmou Sam Brody, pesquisador especializado em mitigação de perigos naturais da Texas A&M University, à agência ProPublicano ano passado sobre a liderança do estado em destruição climática.

No dia 29 de agosto deste ano, enquanto a destruição de Harvey era imediata aos olhos, a World Meteorological Organization (WMO), entidade ligada a ONU, fez uma declaração: “As mudanças climáticas significam que, na ocasião de eventos como Harvey, as quantidades de chuva tendem a ser maiores do que seriam sem o aquecimento global”. A lógica é simples. Oceanos mais quentes evaporam mais água e se acumulam facilmente em massas maiores na atmosfera também mais quente. Ou seja, as nuvens carregam mais chuva e com maior possibilidade de cair de modo intenso, inclusive, o que pode ser demonstrado matematicamente.

A equação Clausius-Clapeyron, usada por cientistas climáticos nos seus modelos, mostra que, a cada aumento de grau Celsius na temperatura do ar, há um aumento em 3% na umidade relativa. Não foi diferente onde está Houston, no Golfo do México, cuja superfície no fim do verão está meio grau mais quente do que no ano passado e um grau e meio mais quente que nos últimos trinta anos. Com todos esses fatores, um dilúvio era provável e aconteceu, tanto que o serviço meteorológico americano foi obrigado a introduzir uma cor inédita na medição de precipitação pluviométrica de um sistema tropical. Ao longo das 24 horas daquela terça-feira da nota da WMO, foram registrados 1249,68 milímetros de chuva, quase o dobro do que caiu em Maceió no acumulado de maio deste ano, o terceiro mais chuvoso desde 1961 na capital alagoana.

Portanto, não é como se não houvesse dados ou estudos revisados e legitimados por entidades científicas, caso da WMO e do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), suficientes para convencer algumas pessoas em posições-chave no socorro a Houston. Trump, no começo do seu mandato, tirou qualquer referência às mudanças climáticas de sites federais como a Environmental Protection Agency (EPA) e removeu os EUA do Acordo de Paris. Tudo bem, ele só esqueceu de retirar os EUA das leis da física e do mundo real.

A polarização política no que deveria ser um assunto que une gregos e troianos, contudo, atrapalha ainda mais, como é evidente no discurso de Thomas Pyle, responsável no começo do ano pela transição do governo Trump no Departamento de Energia dos EUA, ao falar sobre os estragos do furacão que atingiu Houston. “É trágico, mas não é uma surpresa que a esquerda esteja explorando o furacão Harvey para tentar avançar na sua agenda política”, declarou ele, presidente do Institute Energy Research, organização financiada pelos bilionários irmãos Koch para desacreditar as consequências do aquecimento global, causado em grande parte pela queima de combustíveis fósseis. E, curiosamente, quem tem usado o ceticismo climático com fins eleitorais é o próprio governador do Texas e aliado de Trump, o republicano Greg Abbott. Durante sua campanha, em 2014, ele disse ao jornal My San Antonio, que o debate sobre a veracidade das mudanças climáticas ainda está em aberto e que decisões deveriam ser “livres de políticos demagogos usando as mudanças climáticas como desculpa para refazer a economia americana”. Pausa para risos…

Urbanização descontrolada

Não há como tirar a digital do crime, como certa vez me disse Tim Barnett, geofísico e pesquisador do Departamento de Estudos do Clima do Scripps Institution Of Oceanography, em San Diego, na Califórnia. Na entrevista para uma reportagem da National Geographic Brasil sobre a crise hídrica de São Paulo, o cientista não poderia ter sido mais sucinto sobre a conexão entre a ação do homem no planeta e problemas causados por secas, ondas de calor, enchentes e furacões como Harvey, Irma, Katia, José ou qualquer outro fenômeno climático com “nomes dignos de pessoas que trabalham em departamentos de contabilidade”.

Segundo Barnett, cada uma das três últimas décadas tem sido mais quente que a anterior no planeta, coincidindo com um momento em que há um ‘boom’ demográfico e de industrialização em todo o mundo. “Estamos consumindo mais, construindo mais e gerando mais gases de efeito estufa, que aquecem o planeta e impactam o ciclo hidrológico natural e o movimento de massas de ar. Onde antes havia florestas, temos edifícios e casas. Asfaltamos córregos e rios para a passagem de automóveis, acelerando o processo de desertificação urbana, mudando o transporte da umidade pelo ar e a absorção de água pelos aquíferos subterrâneos”,contou-me. “Os efeitos do aquecimento global são revelados nos padrões de chuva de São Paulo, por exemplo, e nas calotas de gelo das montanhas californianas, que hoje são as menores já registradas. Cidades inteiras estão ameaçadas. No longo prazo, a única solução é controlar o crescimento urbano e desenvolver uma interação mais sustentável com os rios e reservatórios urbanos”, explicou à época.

Nas últimas duas décadas, a região metropolitana da texana testemunhou um “boom” imobiliário sem precedentes em sua história, aumentando sua população de 1,7 milhão de habitantes para 2,4 milhões. Boa parte desta expansão se deu de forma horizontal, do centro para os subúrbios, e quase sem controle legal ou ambiental algum. Como aponta o laureado com o Nobel de Economia e articulista do The New York Times, Paul Krugman, a falta de fiscalização na ocupação no solo, pela qual Houston é renomada nos EUA, permitiu o barateamento dos imóveis, mas a um custo altíssimo para a ecologia local.

Na contramão do exemplo de diversas cidades globais que hoje apostam na preservação como ferramenta de resiliência contra as mudanças climáticas, boa parte do avanço de Houston se deu por cima áreas de pradaria e bosques urbano, que funcionam como defesas naturais contra enchentes como as causadas por Harvey. De acordo com a organização não-governamental Katy Prairie Conservancy, a área construída total de Houston é de mil quilômetros quadrados, mas os subúrbios ao seu noroeste antes do “boom” eram ocupados por 1,4 mil quilômetros quadrados de pradaria, hoje reduzidos a menos de 25% do seu tamanho original. “A dispersão urbana de Houston deu à cidade um trânsito terrível e uma pegada de poluição demasiada grande antes mesmo do furacão. Quando a chuva veio, as áreas pavimentadas não permitiram a absorção da elevação das águas para lugar algum”, escreveu Krugman em sua coluna.

Não se trata de ser “ecochato” ou esquerdista, quando falamos em investimentos em áreas verdes e recuperação das várzeas de rios urbanos. O motivo que convenceu autoridades em lugares como Seul, na Coreia do Sul, e a compatriota Los Angeles, na Califórnia, a fazerem isso em seus planejamentos urbanos é muito mais pragmático do que estético ou ético. Trata-se do que os geólogos chamam de “coeficiente de escoamento”, índice que mostra a relação entre o volume da chuva que escoa superficialmente e o volume que infiltra no terreno. “Para ter uma ideia da dimensão do problema da pavimentação urbana, considere que o coeficiente de escoamento em São Paulo está em torno de 85%. Ou seja, boa parte do volume de uma chuva escoa superficialmente, comprometendo rapidamente o sistema de drenagem e gerando problemas como erosões, assoreamentos nos rios e enchentes”, explicou-me o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, autor do livro Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções (PINI, 2012). “Numa pradaria ou bosque florestado urbano, acontece o contrário durante um temporal, o coeficiente de escoamento fica em torno de 15%. Logo, cerca de 85% do volume das chuvas é retido, contribuindo para alimentar o lençol freático”.

Futuro incerto

Frear o avanço urbano danoso, no entanto, não está nos planos dos gestores do Condado de Harris, sob o qual recai a jurisdição de Houston. Desde os anos 90, é adotada por lá uma estratégia ultrapassada de construção de infraestruturas antienchentes, a exemplo dos piscinões paulistanos. A questão evidente é que esses investimentos em engenharia não bastam a longo prazo diante do novo padrão climático global, como foi comprovado com Harvey.

Para piorar, o diretor de medidas contra enchentes do condado até o ano passado, Mike Talbott, disse ao jornal Texas Tribune que não há planos para estudar os impactos das mudanças climáticas na região, taxando os avisos de cientistas, preservacionistas e ativistas como “anti-desenvolvimento”. “A ideia de que essas ‘esponjas mágicas’ nas pradarias teriam absorvido toda água é absurda”, declarou ao veículo. A opinião polêmica de Talbott, se enraizada em ingênua ignorância ou mal-intencionado conservadorismo, é perigosa e apoiada por Donald Trump que, sistematicamente, tem cortado verbas de pesquisas federais sobre as consequências do aquecimento global e projetos de resiliência climática nas grandes cidades americanas desde que assumiu a presidência.

E não é preciso ir longe para conhecer um bom exemplo, racional e simples, de planejamento urbano sustentável para ver que eles funcionam. Austin, também um centro urbano no Texas e também na rota de Harvey, sofreu bem menos com enchentes e se tornou um destino para abrigar muitos dos refugiados climáticos do furacão. Há pelo menos dez anos, a cidade investe numa bem sucedida recuperação de rios urbanos e matas. Já Houston e seus habitantes, em condição tão desfavorável, devem continuar a pagar caro pelo que lhe é devido em verdades científicas. 

Foto: US Army/Divulgação

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Julio Lamas

É repórter e escreve sobre sustentabilidade desde 2012.