Hokusai: a grande onda que varreu o mundo

obra de Katsushika Hokusai

Esta semana traduzi uma matéria do jornalista John-Paul Stonard que escreve para o jornal inglês The Guardian. É que o artista e pintor japonês Katsushika Hokukai vive me traduzindo em ondas que estouram por aí  e vão me varrendo, varrendo o mundo, inundando almas. Não precisariam inundar as costas dos continentes. E o pior é que, nesse caso, nem dá para dizer que a humanidade tem costas largas…  E mal e mal luta para não ter. E ainda solta fogo pelas ventas quando é acusada.

Segue a tradução:

“Tivesse Katsushika Hokusai morrido ao ser atingido por um raio aos 50 anos de idade, em 1810, ele seria lembrado como um artista popular do Ukiyo-e (nome de uma escola de arte japonesa que significa “mundo flutuante”), mas dificilmente como a grande figura que conhecemos hoje. Sua produção tardia (tema da exposição, Hokusai: Além da Grande Onda, que abre no Museu Britânico na próxima semana) foi espetacular – apenas aos 70 anos de idade é que fez sua série de gravuras mais célebre, as Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji , incluindo a famosa Grande Onda, uma imagem que, posteriormente, varreria o mundo. “Até os 70 anos de idade”, escreveu Hokusai certa vez (conscientemente parodiando Confucius) “nada que eu desenhei foi digno de nota.”

É admirável, mas não totalmente verdade –  que ele tenha começado seus mangas, livros de gravuras com técnicas japonesas, compostos por esboços populares,  quando tinha 50 anos. Foram 15 volumes (os últimos três publicados postumamente) que abrangiam todos os assuntos imagináveis: figuras reais, imaginárias e animais, plantas e cenários naturais, paisagens e vistas marinhas, dragões, poetas e divindades combinados  de uma maneira que desafia qualquer tentativa de tecer uma história em torno deles. Folhear o manga original ou mesmo um fac-símile é uma experiência de expansão da mente e deveria ser recomendada a todos aspirantes a artistas.

Pelo caráter de reflexão e invenção, as gravuras são  comparadas às obras de Rembrandt e Van Gogh, e, certamente por isso,  oferecem um panorama emocionante, tanto do mundo, quanto  da imaginação de Hokusai.

Se o manga fez o nome de Hokusai, as Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji (na verdade há 46 cópias na série) asseguraram sua fama. A obsessão de Hokusai pelo Monte Fuji fazia  parte do seu anseio pela imortalidade artística – no budismo e na tradição taoísta, Fuji era visto como  aquele que guardava o segredo da imortalidade, como uma interpretação popular de um de seus nomes sugere: “Fu-shi” ( “imortalidade”).

Eu vi a montanha pela primeira vez, no ano passado, da janela do trem-bala da companhia Shinkansen. Você percebe rapidamente como o Monte domina a paisagem, quando o trem faz as curvas, revelando florestas e cidades, atrás de edifícios, sobre planícies – e porque Hokusai usa essa referência  tantas vezes como um eixo condutor da sua imaginação inquieta.

O Monte Fuji aparece nas Trinta e Seis Vistas em vários aspectos diferentes, às vezes, no centro do palco, ou, em outras situações, como um detalhe de fundo. As primeiras cinco da série foram inteiramente impressas em tons de azul (uma combinação do índigo tradicional e do azul da Prússia, um pigmento químico inventado recentemente), sugerindo um cenário de amanhecer para a montanha, vista ora de uma praia, ora de uma ilha vizinha, ou dos barcos de passageiros e cargueiros,  saindo da baía Edo.

Hokusai introduziu de forma gradual as cores na série; rosas delicados e sombras mais escuras, para mostrar a iluminação do mundo quando o sol encontra o horizonte. A gravura Ejiri, Província Suruga mostra, pela manhã bem cedo, um trecho que é só desolação na estrada de Tōkaidō; o Monte Fuji  está lá desenhado com uma única linha, ao mesmo tempo em que,  no primeiro plano um grupo de viajantes é atingido por uma rajada de vento que faz chapéus e papéis voarem pelos ares.  É uma das minhas favoritas entre as Trinta e Seis Vistas. No Japão, a gravura preferida é Dia Claro com Brisa do Sul. Uma impressão antiga dessa gravura,  incluída na exposição do Museu Britânico, mostra os delicados efeitos atmosféricos do nascer do sol que ficaram perdidos em impressões posteriores, provavelmente, feitas sem a supervisão direta de Hokusai.

As primeiras impressões da Grande Onda, ou Sob a Onda de Kanagawa, também têm coloração sutil:  rosa para atmosfera , cinza para o céu e azul profundo da Prússia por entre as dobras do mar. Skiffs de pesca perdem-se nas ondas, enquanto a grande parede de água, com seus dedos feito tentáculos, ameaça engolir ambos: os barcos e o pequeno Monte Fuji, tão distante. O fato de A Grande Onda ter se tornado a gravura mais conhecida no oeste, em grande parte se  deve à formação de Hokusai  em arte europeia.

Gravuras do início da carreira  mostram a tentativa, um tanto desajeitada, de aplicar a lição de perspectiva matemática, aprendida a partir das gravuras europeias trazidas para o Japão por comerciantes holandeses. Na época da obra Sob a Onda, a sensação de espaço profundo era muito mais sutil. As rígidas linhas convergentes do desenho em perspectiva europeia tornam-se  leves inclinações da montanha sagrada. Isso não poderia, de qualquer forma, representar nada mais longínquo do que o que se fazia na Europa no período.

Eu adoraria ver uma impressão de uma  gravura de Hokusai , delicadamente colorida, pendurada  ao lado da Jangada da Medusa de Géricault, pintada pouco mais de uma década antes, em que uma onda grande semelhante está prestes a estourar sobre a frágil humanidade . O contraste e a extrema modernidade da gravura de Hokusai  certamente estavam na mente daqueles pintores pós-impressionistas que tanto admiravam seu trabalho. Você ainda pode ver gravuras de Hokusai, dos períodos Utamaro e Hiroshige , enfileiradas na sala de jantar de Monet em Giverny; Rodin e Van Gogh também eram colecionadores entusiasmados.

Hokusai assinava suas Trinta e Seis Vistas com o nome Iitsu, esclarecendo na gravura que  o nome pertencia ao “ex-Hokusai”. Era comum tanto no Japão, quanto na China,  que os artistas adotassem nomes diferentes ao longo das suas carreiras, para marcar diferentes fases da vida, e talvez, também, como uma maneira de se renovar. Ele adotou o nome de Hokusai ( “Estúdio Norte”) com quase 50 anos, ao tornar-se um artista independente, deixando seu trabalho como professor para se aventurar por conta própria.

Ao criar sua segunda grande homenagem ao Monte Fuji, três volumes que compreendem  Cem Vistas do Monte Fuji (na verdade 102 vistas), ele usava os nomes artísticos  Gakyō Rojin ( “Velho Louco para Pintar”), e Manji ( “Dez Mil Coisas”, ou “Tudo”). Há de fato um espírito de  exaustiva loucura em Cem Vistas, a invenção maluca  e a curiosidade do manga combinadas  à técnica requintada das Trinta e Seis Vistas. Timothy Clark, o curador da exposição do Museu Britânico, descreve Cem Vistas como “um dos maiores livros ilustrados” já impressos  e é difícil discordar. Os desenhos são brilhantemente concebidos , as gravuras muito bem feitas e os entalhadores da madeira  reproduzem a linha de Hokusai com tanta precisão que pensamos estar vendo os próprios desenhos, em vez de cópias entalhadas e impressas.

É importante lembrar que Hokusai era um artista reconhecidamente comercial, que dependia do grande volume de vendas das suas impressões de baixo custo e dos muitos livros ilustrados produzidos ao longo de sua vida. Apesar do sucesso como artista, ele parece ter vivido, permanentemente, à beira da falência,  o que, em grande parte, era resultado da inaptidão financeira.

Após a morte da segunda esposa, em 1828, a filha de Hokusai, Katsushika Ōi, voltou a viver com o pai, dando-lhe apoio. Ela também foi uma pintora talentosa, trabalhando ao lado do pai num estúdio apertado e bagunçado.

Uma imagem da situação do artista faz parte de uma memória em forma de esboço feito pelo aluno de Hokusai,  Tsuyuki Kosho. Ele mostra o mestre em um alojamento alugado, no tatame, coberto por uma manta e curvado sobre uma pintura. Ōi observa,  atentamente, o pai, enquanto fuma um longo cachimbo. Uma inscrição feita no desenho diz que há lixo empilhado no canto do estúdio, embalagens de comida e outros resíduos. Pendurado na parede, um aviso: “Recusamo-nos, definitivamente, a pintar álbuns ou fãs” – embora você possa imaginá-los aceitando, ainda assim, o trabalho.

O pequeno número de pinturas de Oi que sobreviveu mostra seu talento prodigioso como artista. Uma pesquisa recente revela como ela pode ter contribuído para as últimas pinturas do pai. As obras dele carregam elementos com seu estilo, como os dedos alongados e representações de belas cortesãs (inspiradas na vida do distrito do prazer Yoshiwara, se é que dá para acreditar na animação Miss Hokusai, de 2015).

Uma das pinturas mais impressionantes de Ōi é Hua Tuo operando o braço de Guan Yu, uma cena do romance histórico chinês Romance dos Três Reinos,  que tem uma violência intensa e uma natureza macabra bastante diferentes da pintura do pai.  Sangue  jorra do braço do general Guan Yu, que tomou, como anestésico, somente uma taça de vinho de arroz, e, ainda assim, continua a jogar “Go”. É uma das poucas pinturas autênticas de Ōi e ela desaparece dos registros  que se seguiram  à data de morte de seu pai em 1849.

Se comparadas às gravuras, Hokusai, raramente, exibiu suas últimas pinturas  – grandes pergaminhos em seda e papel pendurados que fazem soar notas diferentes das habituais. Os temas são muitas vezes fantásticos: um grande dragão, que se contorce em uma nuvem chuvosa, cresce acima do Monte Fuji; uma divindade em forma de dragão de sete cabeças  sobrevoa a cabeça do monge Nichiren (Hokusai era um seguidor devoto), sentado no topo de uma montanha, lendo um pergaminho dos sutras.

Em uma reprodução pequena (a única forma que eu  vi), elas podem até parecer ilustrações comerciais, sem aquela sensação  de emoção e clima de profundida das gravuras. Um tigre sorridente que salta na neve – pintado há alguns meses, apenas, da morte de Hokusai -parece demasiadamente curioso e divertido.

Mais uma razão para ir até  o Museu Britânico e vê-los em “carne e osso”. Como nas gravuras de Hokusai, os reais atributos da cor e superfície,  das pinceladas detalhadas e da construção meticulosa revelam-se apenas após uma análise profunda e demorada.

Aos 80 anos, alguém disse a Hokusai  para desenhar, toda manhã, um leão chinês ou um leão dançarino e jogá-lo janela afora, para afastar a má sorte. Um bom número  de desenhos ligados a esse “exorcismo diário” ainda existe (provavelmente, graças à Ōi que corria para recolhê-los), e  está entre suas obras mais vivas e fascinantes.

A única má sorte de Hokusai foi morrer 10 anos antes do seu centenário, sem nunca, na sua opinião, ter alcançado o estado de imortalidade artística que ele estimava ser atingido aos 110 anos de idade, quando, como  escreveu certa vez, “Cada ponto, cada linha,  possuir  vida própria. ”

Hokusai: Além da Grande Onda
Local:
Museu Britânico de Londress
Data: 25 maio a 13 agosto

Local: Abeno Harukas Art Museum – Osaka, Japão
Data: 6 outubro a 19 novembro.

Imagens: 1. A Grande Onda, de Hokusai  (Foto British Museum), 2. Luta de sumo, de Hokusai  (Foto Corbis via Getty), 3. Ejiri, Suruga Province, de Hokusai  (Foto: British Museum), 4. Dragão em Nuvem de Chuva, de Hokusai  (Foto: The Trustees of the British Museum), 5. Esboço de Hokusai com a filha Ōi, de  Tsuyuki Kosho (Foto: British Museum), 6. Hua Tuo Operando o Braço de Guan Yu, de Katsushika Ōi.  (Foto: The Cleveland Museum of Art, Kelvin Smith Fund)

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.