Há tesouros por toda parte, nos ambientes naturais

Por vezes, a vida não é fácil para um menino ou uma menina de seis anos. Os dias da primeira infância estão terminando e a experiência escolar vai mudar, já que é chegado o tempo de aprender a ser aluno do Ensino Fundamental. Uma grande e importante passagem é feita por volta desse período da vida de uma pessoa, trazendo desafios e descobertas.

Talvez por ter um menino de seis anos em casa, eu tenha me apaixonado novamente por Calvin, o personagem de Bill Watterson, que por meio de suas clássicas tirinhas me ajuda a ver o mundo como meu filho o vê. Uma das minhas preferidas é esta, abaixo, que conheci no livro There’s treasure everywhere – A Calvin and Hobbes Colletion by Bill Waterson, de 1996.

Incrível como uma simples tirinha pode dizer tanta coisa…

Primeiro, Calvin está livre e com tempo suficiente para escolher sozinho o que fazer com seu companheiro Haroldo. Talvez ele tenha ficado um pouco entediado antes, perguntando ao pai e à mãe: o que eu posso fazer agora? E, em vez de ser entretido, ele foi deixado com seus próprios pensamentos e, então, uma ideia surgiu… uma ideia dele: por que não cavar um buraco e ver o que tem lá dentro?

Inúmeros estudos exploraram a ligação entre tempo livre e criatividade, imaginação, autoconhecimento, motivação, bem estar e a capacidade de solucionar problemas. Calvin fica muito feliz por ter encontrado algumas pedras, uma raiz e umas larvas (nojentas).

Os meninos e meninas de seis anos não precisam ganhar o último modelo de carrinho disponível ou a boneca mais rara para ficarem felizes. É claro que, se forem expostos desde muito pequenos às mensagens publicitárias que relacionam felicidade à posse desses brinquedos, é isso que eles desejarão. Mas, se forem poupados e tiverem a oportunidade de brincar e conviver com ambientes naturais, eles muito provavelmente se tornarão pequenos exploradores e, assim, como Calvin ficarão encantados com a descoberta de tesouros verdadeiros.

Notem que Calvin não tem brinquedos comuns ao seu redor – carrinhos, bonecos, jogos – ele tem uma pá. Uma ferramenta de verdade que permite que ele aja no mundo feito de terra, pedras, raízes e bichos, seguindo a necessidade inata que todo ser humano sente de explorar, de ultrapassar os limites normais das coisas, de se sentir experimentando os espaços, sempre curioso, dirigindo-se para alguma coisa nova que se encontra à sua frente. 

Tomo a liberdade de imaginar uma circunstância que não fica clara na tira: Calvin está perto de sua casa. Ele não está de férias em algum parque distante. Ele está onde crianças de seis anos estão: na calçada de sua casa, no pequeno pedaço de terra que há perto de onde mora. Por mais incrível que pareça, experiências significativas e ricas como essa podem acontecer sem planejamento, sem investimento, sem consumo, num dia qualquer. Basta que confiemos na capacidade das crianças de se vincular ao mundo e brincar.

Finalmente, proponho a reflexão sobre como muitas vezes o acesso a dispositivos digitais se colocam como barreiras a experiências como essa: o que as telas substituem? O que as crianças perdem?

A imagem que ilustra este texto mostra o pequeno Calvin que mora na minha casa construindo um esconderijo para formigas em um estacionamento enquanto esperava por sua irmã. Ele poderia ter passado os vinte minutos de espera jogando num celular, mas achou um pequeno pedaço de grama, uns gravetos e algumas formigas. Foi o seu tesouro daquela tarde.

Lembremos que a capacidade humana de pesquisar, experimentar, arriscar e criar é o motor das inovações de artistas, cientistas e filósofos. Ao longo de milênios, o ser humano fez da exploração, das descobertas surpreendentes, das experiências e, sobretudo, do aprendizado, as atividades centrais de sua existência. É fundamental permitir que as crianças tenham liberdade, tempo e espaço para viver em plenitude a curiosidade e o encantamento com o mundo e com todas as surpresas que a vida coloca à nossa frente, princípios essenciais para a expressão de sua potência e humanidade.

Foto: arquivo pessoal

Um comentário em “Há tesouros por toda parte, nos ambientes naturais

  • 21 de fevereiro de 2020 em 7:51 PM
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    A antropóloga Margaret Mead nos anos 30, se não me engano, fez um estudo comparando o desenvolvimento de crianças de uma ilha do pacífico (Samoa??) com crianças de Los Angeles. Enquanto que as de LA cresciam com distúrbios socioafetivos, as da ilha não. A diferença, segundo ela, era que nas ilhas as crianças cresciam no meio dos adultos. Não havia brinquedos, mas sim a canoa do pai, os materiais dos adultos etc. As crianças não eram segregadas da vida social dos adultos, mesmo dentro de casa, onde as casas sem terem paredes, mas meras separações com tecidos, as crianças observavam relações sexuais dos adultos desde cedo e aquilo era natural para eles. Enfim, tem um livro dela dessa época, bem velhinho, que vale a pena ler se for achado! Achei interessante porque há um pararelo com o teu texto.

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.