Quando os “Guardiões da inundação” (nome da obra acima) vestem suas botas é sinal de que fizemos algo muito errado. É sinal que nem eles, nem nós temos mais pouso garantido em chão firme. A obra acima do artista plástico australiano Peter Kingston é esse banho de água fria, essa chuva forte e raivosa sulcada no linóleo. Impressão desses tantos riscos é gravura que impregna a nossa memória; inunda a nossa percepção com o tão incômodo e grande risco que são as enchentes em cidades grandes de todo o mundo.
Como se o risco fosse natural, como se já fizesse parte, como se já tivéssemos nascido com ele. E, sim, quantos já não devem ter saído do aconchego aquático uterino para tomar o doído fôlego em terras embaçadas pelos ares nebulosos das inundações cada vez mais presentes nas áreas próximas das beiras de rios poluídos, baixadas, bueiros entupidos nas esquinas em que se espicham os arranha-céus imprudentemente construídos. Quantos alvarás de construção mais até que a água se infiltre também em palácios de governos e prefeituras?
Aprenderemos um dia que não há que conter a água. Não podemos. Não temos força. Entenderemos que água foi feita para fluir em seu espaço e em seu tempo? Ou somos deuses Netunos e vamos cavalgar as ondas? Ou quem sabe caminhar sobre elas?
Cruzêmo-las, então, como o artista chinês Vincent Huang propôs. Na última Bienal de Veneza, em “Cruzando a Maré”, ele inundou a sala que havia sido destinada à ilha de Tuvalu, na Oceania. O quarto menor país do mundo corre o risco de ser engolido pelo mar que sobe, sobe e sobe. Huang construiu pontes silenciosas, atravessadas pelos visitantes que receberam sapatos molhados.
Ele ainda nos dá essa chance. Ainda há pontes, ainda conseguimos andar de sapatos. Ou queremos mesmo calçar botas? Só se fosse para pegar caranguejo no mangue… Mas esse ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho também está ameaçado pelas construtoras e pelas favelas. Pelo esgoto e pelo lixo.
“Cruzando a Maré”, instalação do artista chinês Vincent Huang na Bienal de Veneza
Vasudevan Akkitham é um artista indiano atento ao problema ambiental que ocorre, só para citar um exemplo, em Mumbai. A estimativa é que a cidade tenha perdido, entre 1995 e 2005, 40% dos mangues. Mapeamento por satélite sofisticado parece ser uma tarefa inútil nessa grande cidade cheia de estacionamentos, prédios e lixões que brotam dessa área perigosamente reivindicada pelo mar e pela terra, com razão.
O arruinadoramente absurdo é que há muito mangue em terras privadas. Como? Terras de transição intransitoriamente vendidas? Terei que me render? É muita lama nessas cidades que precisam crescer a qualquer custo. Só mergulhando em “Pintura Flutuante” e em muita meditação. Só nadando nos mudrás (gestos) da dança indiana de cinco mil anos para não se afogar e conseguir encontrar a chave perdida da fechadura dessa porta da cidade em que nos aprisionamos submersos em meio ao nosso descarte.
Encontraremos a nossa boia de salvação?
Obra do indiano Vasudevan Akkitham, que nos mostra submersos
em meio ao nosso descaso com a água
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Fotos: divulgação artistas