Fake news florestal

Brasil é o país do mundo que teve mais perda florestal em 2017

Por Tasso Azevedo e Luiz Fernando Guedes Pinto*

Circula pelo WhatsApp um vídeo de uma palestra que supostamentedemonstra, com uma sequência impressionante de números, que o Brasil encolheu. O palestrante sugere que o país conserva florestas demais e tem tanta área protegida, tanta terra indígena e tanta exigência de preservaçãoque ficou sem espaço para desenvolver a agropecuária. Como tantas outras histórias do “zapzap” (como o WhatsApp é carinhosamente chamado por seus usuários), esta também é fake news.

É verdade que, no Brasil, ainda há muita área com vegetação nativa. Os dados do projeto MapBiomas – uma rede brasileira que reúne 15 instituições de pesquisa e mapeou todas as mudanças nouso da terra realizada no país de 1985 até 2017 (veja a animação no final deste post) -,mostram que o país tem 67% do território coberto por florestas e campos naturais. Mas nem de longe estamos sozinhos em termos de conservação, veja: 70% da Rússia está coberta por vegetação nativa, incluindo uma área florestal quase do tamanho do Brasil e há cerca de 30 países com mais de 60% de cobertura florestal, incluindo a Coreia do Sul, com 63%, a Suécia, com 67% e o Japão, com 68%.

O Brasil, por outro lado, é o quarto maior produtor de alimentos do planeta, atrás de China, Índia e EUA, e tem a terceira maior extensão de terras sob produção agropecuária, atrás apenas de China e EUA. O MapBiomasmostra que o país tem hoje 245 milhões de hectares em pasto e lavoura. É 1,17 hectare de área produtiva por habitante, mais do que nos EUA (1 ha) e que a populosa China (0,34 ha).

Cerca de 25% do país está dentro de terras indígenasunidades de conservação. São 216 milhões de hectares, excluindo as APAs (Áreas de Proteção Ambiental), categoria de área protegida que permite produção e ocupação (o Distrito Federal tem 80% de seu território dentro de uma APA).Só que essas áreas protegidas estão muito mal distribuídas: 90%, ficam na Amazônia, que concentra apenas 10% da produção agropecuária. Fora da Amazônia, apenas 5% do território está sob áreas protegidas. E é fora da Amazônia que ocorre 90% da produção agropecuária.

Além disso, uma porção enorme das áreas protegidas amazônicas está em regiões remotas ou sem aptidão agrícola. Ou seja, o número de áreas protegidas parece impressionante no powerpoint, mas não compete com o agronegócio.

O Brasil também não é nenhuma jabuticaba no quesito “área protegida” legalmente. Protegemos muita floresta porque temos a maior biodiversidade do mundo para resguardar. A Austrália tem 20% de seu território protegido. A França, 26%, o Japão e o Reino Unido, 29%, e a Alemanha, 38%. Entre os nossos vizinhos, Peru, Colômbia e Bolívia têm mais de 40% do território protegido.A média do mundo é 29% em unidades de conservação e territórios indígenas. A proporção de áreas protegidas no país, portanto, não destoa da média.

O argumento de que as áreas protegidas e outras áreas legalmente designadas – para assentamentos de reforma agrária, por exemplo– são “improdutivas” é falacioso. Terras indígenas e unidades de conservação de uso sustentáveldesenvolvem agricultura, manejo florestal e extrativismo.

Atire o primeiro pote de açaí quem acha que isso não é produção!! Só a comercialização de produtos da florestamovimenta em torno de R$ 1,5 bilhão ao ano – e isso excluindo a indústria madeireira na Amazônia. Faltam políticas e investimentos para que nossas áreas protegidas gerem ainda mais renda e empregos.

Cruzando os dados do MapBiomascom o mapa fundiário do Brasilcompilado pelo projeto Atlas da Agropecuária Brasileira, conclui-se que as propriedades privadas(cadastradas no Incra ou com Cadastro Ambiental Rural, o CAR)possuem quase 190 milhões de hectares de vegetação nativa, ou cerca de um terço do total do país.

Imóveis privados podem exercer produção rural em toda a sua extensão, exceto nas Áreas de Preservação Permanente (APPs),que protegem, especialmente, os cursos d’água e perfazem em média cerca de 10% da área da propriedade. Uma parcela da área que varia de 20% a 80%, dependendo do bioma, deve ser mantida com vegetação nativa na forma de reserva legal, sendo a produção limitada a atividades que não ponham a mata abaixo.

conservação das áreas florestais é bem diferente quando comparamos as áreas públicas e privadas. As propriedades privadas tiveram perda líquida de mais de 20% de sua cobertura florestal nos últimos 30 anos. Nas unidades de conservação e terras indígenas a perda foi de 0,5% e, em outras áreas públicas não protegidas, de 5%.

Infelizmente, apesar da queda das taxas de desmatamento entre 2005 e 2012, o Brasil ainda é o país que mais desmata no planeta:
– em 50 anos, destruímos quase 20% da Amazônia, o equivalente a mais de dez vezes o território da Holanda e o da Bélgica somados.
– o Cerrado, nosso segundo maior bioma, está reduzido à metade.
– o Pantanal perdeu 7% em 15 anos.
– o Pampa, perdeu 13%.
– restam menos de 15% da Mata Atlânticaoriginal.No caso amazônico, tanta devastação ocorreu à toa. Segundo os dados do projeto Terraclass, feito pela Embrapa e pelo Inpe (Centro Regional da Amazônia), 63% da área desmatada é ocupada por pastos de baixíssima produtividade, com menos de um boi por hectare, e 23% foi abandonada e está em regeneração.

Não é verdade que precisamos desmatar mais para ampliar nossa produção. Graças ao uso intensivo de tecnologia, tivemos enormes ganhos de produtividade e evitamos maior desmatamento.

De 1991 a 2017, a produção de grãos e oleaginosas subiu 312%, mas a área plantada cresceu apenas 61%. Em São Paulo, por exemplo, a área de cultivo agrícola dobrou desde 2000, crescendo essencialmente sobre as pastagens sem que o Estado diminuísse a produção pecuária. Sabe quem mais cresceu por lá? A Mata Atlântica. São Paulo hoje tem mais floresta, mais agricultura e mais boi.

Há espaço no Brasil para ampliar a produção e a conservação. Dizer o contrário é ofender o espírito empreendedor e competitivo do agricultor brasileiro. O Brasil tem tudo para ser o maior produtor mundial de alimentos e em bases sustentáveis. Para isso, podemos e devemos zerar o desmatamento, acabar com a ocupação ilegal de terras públicas, defender nossas áreas protegidas e aprofundar os ganhos de produtividade de nossa produção rural. É apostar no ganha-ganha.
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NOTA DO CONEXÃO PLANETA: a palestra comentada por Tasso Azevedo e Luiz Guilherme, no início deste texto, está neste link. Recomendamos também a leitura da reportagem do jornalista André Trigueiro, para o G1, na qual especialistas comentam os dados divulgados pelo palestrante. 

Abaixo, a animação do MapBiomas que revela as mudanças no uso da terra promovidas no país de 1985 a 2017.

* Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico e, em seguida, no Blog do Tasso, em 13/2/2019.

*Tasso Azevedo é coordenador técnico do Observatório do Clima e coordenador geral do MapBiomas e Luís Fernando Guedes Pinto é gerente de Certificação Agrícola do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola)

Foto: Felipe Werneck/Ibama/Creative Commons/Flickr

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Tasso Azevedo

Engenheiro florestal, consultor e empreendedor social em sustentabilidade, floresta e clima. Coordenador do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima e colunista de O Globo e revista Época Negócios. Foi diretor geral do Serviço Florestal Brasil, diretor executivo do Imaflora e curador do Blog do Clima