Doações que salvam vidas – ou queimam reputações

Recentemente, estourou um escândalo envolvendo o potencial mau uso de doações feitas pela internet para um bebê sofrendo do tipo mais grave de uma doença genética chamada Atrofia Muscular Espinhal (AME). A família de Joinville, Santa Catarina, não tinha condições de fazer frente aos custos financeiros do tratamento do filho e começou uma campanha de mobilização online chamada “AME Jonatas”.  Foram tão bem sucedidos que arrecadaram mais de R$ 4 milhões em poucos meses.

O problema veio quando surgiram suspeitas de que parte do dinheiro das doações estava sendo usado para cobrir um padrão de vida incompatível com a situação da família antes da campanha. Fotos do carro de luxo comprado recentemente e de uma viagem a Fernando de Noronha, além da falta de prestação de contas detalhadas do uso dos recursos doados, abriram um véu de suspeitas que chegou até a Justiça, que acabou bloqueando as contas da família.

Campanhas públicas envolvendo o apoio direto a pessoas – especialmente crianças – com necessidades urgentes e risco de vida são as que mais têm chance de despertar a solidariedade coletiva.

Este tipo de campanha envolve três elementos fundamentais:

  • uma história pessoal muito profunda, que gera conexão imediata,
  • uma situação de urgência, que estimula uma ação imediata, e
  • um sentido de satisfação pessoal, por contribuir com uma situação que poderia acometer qualquer um, inclusivo um filho nosso.

Mas o impacto de uma história como a da família catarinense vai muito além do drama familiar.

Uma das consequências da ampla cobertura que o caso vem recebendo é justamente o de lançar uma desconfiança geral sobre campanhas semelhantes, especialmente as iniciadas por pessoas físicas. De fato, separar o joio do trigo, em termos do uso correto dos recursos recebidos, é muito difícil e a primeira reação das pessoas é segurar suas doações para casos semelhantes, com medo de que os recursos não estejam sendo usados corretamente.

Para evitar a refração nas doações e estimular o engajamento das pessoas é fundamental, em primeiro lugar, uma postura de absoluta transparência. A internet e as redes sociais estão aí para ajudar nisso. Todas as contas relacionadas à campanha de doação devem ser abertas e apresentadas publicamente, com cada novo relatório sendo comunicado via Facebook, Twitter ou outro recurso. É preciso haver um canal de comunicação direta, para tirar dúvidas que venham a surgir.

A transparência tem de ser entendida não como uma virtude, mas como uma obrigação. Isto envolve, inclusive, deixar claro em todo o momento para quê os recursos estão sendo pedidos e no quê estão sendo efetivamente gastos. Esta equação nem sempre é perfeita e, às vezes, é preciso mudar a destinação do que foi pedido inicialmente e, sempre que isto acontecer, é preciso explicar para as pessoas.

Isto se conjuga com outro elemento importante: é preciso cuidar do storytelling da campanha. Enquanto ela estiver no ar, sua história precisa ser contada a todo o momento, preferencialmente em um âmbito pessoal.

É importante mostrar para os doadores como os recursos doados estão sendo usados e impactando a vida dos envolvidos. Cada vitória merece ser celebrada coletivamente. Cada novo desafio ou dificuldade deve ser compartilhado com a comunidade de doadores, que pode se sentir estimulada a continuar apoiando. E as mudanças de rumo precisam ser comunicadas publicamente.

Tudo isto vai fortalecendo a conexão e a credibilidade da campanha e de seus idealizadores, o que diminui, mas não evita que críticas ou denúncias possam surgir, especialmente no ambiente conflagrado das mídias sociais. Se isto acontecer, a postura de transparência é a melhor salvaguarda. Não se deve furtar a encarar de frente, e de forma imediata, qualquer crítica, munidos de informações claras e comprováveis do andamento da campanha de doações.

Casos urgentes e extremos como o de crianças sofrendo de Atrofia Muscular Espinhal muitas vezes dependem exclusivamente da solidariedade coletiva para dar aos pais esperança e diminuir o sofrimento dos pequenos. Mas, infelizmente, o Tribunal da Internet é muito volátil e cruel e precisamos não nos deixar levar pela onda de perseguição e agressões que surgem em seguida a casos como o de Santa Catarina.

Pesquise, faça perguntas diretas aos promotores das campanhas e não deixe de doar cada vez que se sentir conectado e com confiança. Na real, a gente nunca sabe se um dia vai acontecer com a gente.

Foto: Jens Johnsson/Unsplash

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Renato Guimarães

Jornalista, com mestrado em relações internacionais, é especialista em temas ligados à mobilização e engajamento em causas de impacto social. Morou oito anos no Peru, de onde conheceu bastante da América Latina. Trabalhou em organizações como Oxfam GB, Purpose, Instituto Akatu e IFC/Banco Mundial. Foi sócio de duas consultorias – Gestão Origami e Together – e Diretor de Engajamento do Greenpeace Brasil. Atualmente, é Assessor Sênior do Social Good Brasil e VP de Engajamento da Together, agência focada em processos de mobilização para causas de impacto