Di Freitas: o homem que dá luz às cabaças musicais
Grávida de tanta água, a cabaça era só doação. Sedenta por transformar reservas líquidas em ajuda sólida… Alimentava vício necessário. Crescia verde e forte com a intenção de fazer nascer nos precisados a força que emana depois da sede matada. Morte morrida, com ela não tinha vez. E quando viu estava matando sede de todo tipo. Ao encontrar o parceiro Francisco Di Freitas deu de se deixar entornar por acordes. E agora lá no Cariri, no Ceará, é vista entoando sons e formando a primeira orquestra do Brasil composta por músicos que tocam rabecas feitas de cabaça.
Francisco faz uma a uma para os alunos. Não se diz luthier. Aprendeu olhando os mestres tradicionais. Não sabe de física, nem de matemática. Quem calcula as ondas sonoras é a intuição. É a colheita da cabaça, é o corte certo, a construção do tampo, do braço. Faz porque quer que mais gente conheça música e saiba tocar, ainda que sem dinheiro para comprar um instrumento. Aprendeu com os mestres rabequeiros que quando se tem vontade de realizar algo, acha-se a condição.
É uma nobreza de sentimento essa de Di Freitas. A preocupação é com os futuros músicos e com a natureza. Ele constrói a rabeca com cola natural. Queria que as cordas fossem de tripas. Mas não deu. Não encontrou quem fizesse. Usa metal mesmo. E cada rabeca tem um som único. Como poderia ser diferente? Por acaso, existem na natureza duas cabaças iguais? De mesmo tamanho? Com a mesma espessura?
A expectativa de tocar a primeira nota, esperar o primeiro som nascer… Acho eu que todo primeiro chorinho que explode, todo primeiro inspirar merece uma rebeca dessas para acompanhar seus passos, para fazer fluir na veia, derramar pelo corpo a música que tanto pode fazer por nossos nós umbilicais.
Quem mais quer se transformar em gerador de cabaça? Em fazedor de música? Em alimentador de esperanças?
Elizandra Souza, poetisa e editora da Agenda Cultural da Periferia no seu livro Águas da Cabaça, com ilustrações de Salamanda Gonçalves e Renata Felinto, fazem poesia com cabaça. A obra faz parte do projeto Mjiba – Jovens Mulheres Negras em Ação e reúne textos de sete mulheres negras.
Quem mais quer dar à luz ao que de natural temos? Talita Madame Nagô nos diz que no início de tudo era a cabaça… Que há um mundo nessa história…
Que mais gente precisa crescer ouvindo. Que mais gente precisa brincar de bonecas com a cara de gente daqui. Que bacana ensinar as crianças que a cabaça fica grávida de água. Que está ao alcance de cada um gestar o que quiser: ideias, soluções, projetos, amores, favores. E menos dores.
Mas, do que jeito que a coisa anda, tenho que dizer que ainda somos muito, muito cabaços nessa história de gerar menos problemas e consumir mais ideais sustentáveis.
Fotos: 1. Cabaça, Flickr | 2. Orquestra de Rabecas do Cariri | 3. Di Freitas, por Gabriela Garcez | 4. Ilustração de Renata Felinto | 5. Obra Luz, camêra e ação gravando, a cena vai. No início de tudo era cabaça, de Talita Madame Nagô | 6. Bonecas de Di Freitas
Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.