Da Bobina de Tesla à Bobina de Breno

Quando, aos onze anos de idade, Breno me procurou para contar que seu próximo projeto pessoal seria construir uma Bobina de Tesla, pensei: quem é Tesla? O que é uma Bobina de Tesla? Logo, me explicou ele, que Nikola Tesla foi um inventor do campo da engenharia mecânica, de origem sérvia, que viveu de 1856 a 1943 e, entre outras coisas, desenvolveu um modo autônomo de produção de energia. Era simplesmente isto o que Breno queria fazer.

Trabalhei durante dez anos em uma escola que permitia aos seus estudantes investigar e produzir aquilo que desejavam. E, diferente do que estamos acostumados a ver nas escolas convencionais, com aulas divididas em disciplinas, durante o Projeto Pessoal, ao se debruçar sobre seus próprios interesses, os estudantes do Ensino Fundamental dessa escola inevitavelmente aprendiam os conteúdos das diversas áreas do saber.

As turmas não eram divididas por idade, e os estudantes não precisavam permanecer sentados em sala de aula, sem a divisão disciplinar do conhecimento transitavam, de forma natural, pelas diversas áreas da ciência.

A escola tinha clareza da natureza sistêmica, holística, complexa e integral do conhecimento. Ao separar a História da Geografia nossa herança positivista e cartesiana parece não perceber que aparta o tempo do espaço; ao separar a Química da Biologia, separa os seres vivos de seus elementos constituintes. Assim, a escola convencional dificulta o interesse e a compreensão do conhecimento e cria barreiras para o aprendizado por trabalhar os conteúdos de forma abstrata e distante da realidade da vida de seus estudantes.

Embora a divisão da ciência em disciplinas possa favorecer o aprofundamento de um modo específico de se fazer pesquisa e produzir conhecimento, por outro lado impede que muitas crianças se interessem pelos conteúdos escolares por não se reconhecerem neles. A segmentação da ciência em disciplinas é contrária à própria natureza do conhecer. Como escreveu Aristóteles, “nada chega ao intelecto sem antes passar pelos sentidos”.

Enquanto realizavam seus projetos, os estudantes não precisavam trabalhar sentados e enfileirados em carteiras. Pelo contrário, utilizavam de todo o espaço disponível na escola e, quando necessário, planejavam saídas externas, a exemplo do projeto sobre cachorros que organizou visitas à um canil e à um consultório veterinário, com o intuito de contribuir para o livro que produziam sobre o tema.

Esta é uma prática pedagógica muito mais saudável, uma vez que permanecer tanto tempo sentado, apenas escutando, estimula um comportamento passivo e submisso, desenvolve prioritariamente apenas aspectos relacionados à escuta, ao trabalho da mente, ignorando questões essenciais à educação do corpo como um todo. O desenvolvimento do corpo e de uma postura ativa frente à vida é fundamental para o autoconhecimento e, por consequência, para a aprendizagem de diversas habilidades extremamente úteis e benéficas ao ser. Meia hora de intervalo, mesmo que somada às aulas de Educação Física, não são suficientes para isto.

Separados por salas e idade, os estudantes são impedidos de se aproximar de colegas que possuem afinidades, muito além do mesmo ano de nascimento. Cada um tem seu próprio tempo, não entramos todos na puberdade com a mesma idade, por exemplo.

Já conheci um menino que se esforçou para ser reprovado por estar apaixonado por uma menina do ano anterior, mas isso seus pais e professores não sabiam e, logicamente, não aparecia nas provas, tampouco era levado ao conselho de classe. Assim como outro garoto que fez de tudo para ser reprovado, pois preferia a companhia dos meninos da série anterior.

Breno levou quase todo o ano letivo para produzir sua Bobina de Tesla. Nesse período, foi preciso pesquisar bastante, ler, escrever, selecionar os materiais necessários, medir, serrar, montar, navegar por áreas do conhecimento e conteúdos que só lhe seriam apresentados, talvez, durante o Ensino Médio ou universitário.

Podemos afirmar que seu Projeto Pessoal envolveu Língua Portuguesa, Matemática, Física, Eletrônica, Marcenaria, tanta coisa. Entretanto, se estes conteúdos lhe tivessem sido apresentados em forma de aulas expositivas, dificilmente o motivaria a produzir o que produziu e a aprender tudo aquilo que aprendeu.

Quando os estudantes podem estudar o que desejam, eles sentem-se naturalmente motivados, se empenham e aprendem de forma espontânea. Não se sentem ignorantes ou incapazes como muitas vezes os fazem crer as intermináveis e incompreensíveis aulas expositivas. Não podemos subestimar a força que essa forma de aprender possui em relação à promoção da autoestima desses indivíduos.

Quantas pessoas não passaram a vida se enxergando como ignorantes e incapazes pela trajetória de fracasso escolar?  Quantas histórias não poderiam ter sido diferentes caso essas pessoas tivessem espaço na escola para se dedicar aquilo que lhes interessava por dialogar mais intimamente com seus interesses pessoais? Quantos estudantes poderiam deixar de fugir das escolas neste Brasil com índices altíssimos de evasão escolar?

Diferente do que pode parecer, este não é um discurso que desvaloriza a figura ou o papel do professor, pelo contrário, o alivia da falsa obrigação de ser o detentor absoluto do saber e o coloca no papel de mediador e orientador do conhecimento e das relações.

Quando trabalham por projetos, os professores das diferentes disciplinas passam a orientar um número X de estudantes. Cada professor fica responsável por uma quantidade de projetos previamente selecionados de acordo com a afinidade com o tema proposto pelos estudantes. Fazíamos uma reunião inicial na qual cada grupo contava em que etapa o projeto se encontrava e o que planejava fazer naquele dia e, ao final, nos reunimos de novo para que os alunos mostrassem aquilo que foram capazes de produzir naquelas horas.

Em pleno século XXI, permitir que os estudantes dediquem-se àquilo que desejam ainda é extremamente inovador. Pedro não pode investigar as espécies de dinossauros, pois precisa assistir às aulas de História, Bia não pode descobrir as qualidades  das flores, pois precisa entrar na aula de Ciências, Lucas não pode construir uma pista de autorama, pois precisa acompanhar o curso de Física.

Subestima-se o poder de transformação social dessa outra forma de se pensar a organização da instituição escolar. As escolas convencionais impedem que seus estudantes dediquem-se aos seus interesses por medo de que, assim, não aprendam os “conteúdos necessários”. Entretanto, verificamos que os estudantes que podem se dedicar àquilo que desejam são aqueles que acabam, de fato, aprendendo muito mais.

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Denis Plapler

Sociólogo formado pela PUC-SP e Mestre em Filosofia da Educação pela USP, é professor da educação básica à universitária e atua como assessor pedagógico para o Alana