Como São Paulo se tornou a cidade dos mil papagaios?

Post 27 - Blog Avoando (autor: Sandro Von Matter)

Ela não é apenas a cidade mais populosa do Brasil, mas também uma das duas maiores do continente americano. Com mais de 12 milhões de habitantes, São Paulo é considerada a 14ª cidade mais globalizada do planeta com moradores nativos de 196 países diferentes, e claro, lar de nada menos que 464 espécies de aves.

Hoje, praticamente dominada pelos seres humanos, é muito diferente daquela pequena povoação batizada de São Paulo de Piratininga, há mais de 460 anos atrás. Alguns séculos se passaram e a região sofreu as consequências de uma acelerada urbanização que levou a mudanças drásticas da paisagem e profundas alterações da fauna e flora.

Ainda assim, de uma forma ou de outra, a natureza sobrevive e nem todas as mudanças são tão desagradáveis. Uma das aves mais inteligentes do país, o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), alegra moradores da maior metrópole da América Latina, voando pelos céus da cidade.

Você pode ficar surpreso em saber, mas a chegada desta espécie a São Paulo é envolta em um clima de mistério repleto de curiosidades, começando pelo fato de que esta bela ave não é nativa da região e, sim, do interior do país. O papagaio-verdadeiro habita originalmente a região Nordeste (Piauí, Pernambuco, Bahia), o Brasil central (Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso) até o Rio Grande do Sul, sendo ausente nas áreas litorâneas.

Ainda assim, a ave tem sido observada com frequência em São Paulo, nos últimos 10 anos, relatos e registros fotográficos se multiplicam na internet, não apenas um ou dois, mas até mesmo bandos de mais de 20 indivíduos já foram registrados por diversas vezes na cidade. Estes mesmos registros já permitem estimar que, hoje, vivem na cidade, em total liberdade, no mínimo, 1200 papagaios.

Mas, diferente do que algumas pessoas imaginam, o papagaio-verdadeiro não chegou a São Paulo voando. Especialistas de instituições de renome apontam que os grandes responsáveis por sua chegada à cidade foram os próprios moradores: eles trouxeram as aves, inicialmente, como animais de estimação. Depois, estas fugiram ou foram libertadas.

Vale ressaltar que, não estamos falando de uma ave qualquer, mas sim do papagaio-verdadeiro, possivelmente a mais popular de todas as aves brasileiras e um dos maiores alvos do comércio ilegal de animais silvestres no mundo.

Isso pode ser facilmente confirmado em uma breve análise de dados disponibilizados por instituições como os Centros de Triagem de Animais Silvestres (CETAS), órgão responsável por receber animais apreendidos em operações de fiscalização do Ibama: somente entre 2008 e 2010, nada menos que 2.145 papagaios chegaram aos CETAS. Já o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), do Mato Grosso do Sul (IMASUL), recebeu cerca de 503 filhotes, entre 2004 e 2006 . Outros 4.270 indivíduos da mesma espécie foram recebidos pela mesma instituição entre 1988 e 2010.

Uau! Mas afinal quantos indivíduos seriam anualmente comercializados ilegalmente no país? Ainda não se sabe ao certo, mas possivelmente milhares. Em estudo realizado na Bolívia, em 2011, os pesquisadores Herrera e Maillard estimaram que aproximadamente 22 mil psitacídeos, em grande maioria pertencentes à espécie Amazona aestiva, são comercializados anualmente naquele país.

É possível supor que os dados disponíveis para o Brasil sejam apenas uma pequena amostra da realidade, ou seja, é a ponta do iceberg do total de papagaios comercializados anualmente, muitos dos quais há décadas destinados, pelo comércio ilegal, à São Paulo. Isso suporta a ideia de que a verdadeira origem dos papagaios que habitam a cidade, hoje, recai sobre solturas e fugas de aves mantidas ilegalmente em cativeiro.

Mas, como estes papagaios inexperientes sobreviveriam, em liberdade, em uma cidade tão gigantesca? Parte da resposta pode estar intimamente ligada ao fato de que estas não são aves comuns. Os papagaios são Psitacídeos, família de aves que, segundo cientistas, abriga alguns dos maiores gênios do mundo animal.

Desde 1990, a pioneira pesquisadora Dra. Irene Pepperberg, da Universidade de Harvard, investiga aspectos relacionados à inteligência e à comunicação de um primo próximo do nosso papagaio-verdadeiro, o papagaio-cinzento (Psittacus erithacus). Segundo Pepperberg, que dedicou a vida ao estudo destas aves, os papagaios desta espécie são capazes não apenas de imitar a fala humana, mas de aprender o significado das palavras e efetivamente se comunicar e até realizar operações matemáticas.

Atualmente, dezenas de outras pesquisas focadas em investigar as extraordinárias habilidades dos papagaios já foram publicadas em algumas das mais importantes revistas científicas do mundo.

Em 2011, artigo publicado na revista Biology Letters pela Dra. Sandra Mikolasch, da Universidade de Viena,  comprovou que indivíduos desta mesma espécie podem ser tão inteligentes quanto alguns grandes primatas, como os chimpanzés ou, mesmo, crianças de 4 anos de idade.

Pesquisas desenvolvidas pela Dra. Alice Auersperg, como o artigo publicado na revista PlosOne, no mesmo ano, já evidenciaram, por exemplo, que o papagaio-da-nova-zelândia (Nestor notabilis) é uma das espécies de aves mais inteligentes do mundo, sendo capaz de utilizar ferramentas, solucionar problemas e, até mesmo, planejar o futuro.

Mas e quanto ao nosso famoso papagaio-verdadeiro? Seria a espécie que sobreviveu ao caos da metrópole tão inteligente quanto seus primos estrangeiros? Foi exatamente o que a pesquisa da Dra. Olívia de Mendonça-Furtado do Laboratório de Etologia Cognitiva, do Instituto de Psicologia da USP, descobriu e revelou em pesquisa publicada na revista Animal Cognition, em 2008.

Assim como seus primos, os papagaios-verdadeiros aplicam métodos de resolução de problemas previamente aprendidos para superar novos obstáculos, ou seja, são capazes de solucionar rapidamente problemas com base em conhecimento previamente adquirido, exibindo um comportamento tipicamente humano, a generalização do aprendizado.

O fato desta espécie exibir habilidade cognitiva elevada, certamente contribuiu para a sobrevivência das aves em um ambiente altamente antropizado como São Paulo, mas, neste caso, a inteligência foi apenas um dos fatores responsáveis pelo sucesso das aves. Esses papagaios contaram também com uma pequena dose de “sorte”.

Um dos estudos mais completos sobre a espécie foi realizado pela pesquisadora Gláucia Helena Fernandes Seixas, entre os anos 2005 e 2007. Ela investigou a fundo os hábitos alimentares do papagaio-verdadeiro em uma de suas áreas de ocorrência natural, no Pantanal do Mato Grosso do Sul.

Os resultados obtidos indicaram grande flexibilidade na dieta das aves, que inclui cerca de 48 espécies vegetais, com predominância no uso de espécies das famílias Anacardiaceae, Bignoniaceae e Fabaceae. Os papagaios-verdadeiros se alimentam de flores, frutos, folhas e, sobretudo, de sementes, o que classifica a espécie como granívora mas, também, como generalista em relação à utilização dos recursos alimentares, de acordo com sua disponibilidade no ambiente.

Seixas observou, ainda, que os papagaios utilizam, majoritariamente, cavidades em árvores maduras para sua reprodução: cavidades cuja formação se inicia, por exemplo, pela queda de galhos.

Somam-se a estas informações os dados de um estudo publicado em 2007 pelo pesquisador Lucas Carrara, na Revista Brasileira de Ornitologia, sobre o uso de eucaliptais como área de dormitório pela espécie. Curiosamente, os resultados revelaram uma preferência dos papagaios-verdadeiros da região por dormir em áreas de florestas homogêneas de eucalipto, mesmo com amplos trechos de vegetação nativa disponíveis.

Felizmente, para a “sorte” dos papagaios paulistanos, a cidade possui pouco mais de 640 mil árvores espalhadas pelos seus 96 distritos, de acordo com dados recentes da Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras.

São quase meio milhão de árvores que incluem diversidade de espécies nativas e exóticas, que são ou pertencem às mesmas famílias de espécies de árvores, coincidentemente já descritas em pesquisas científicas, o que inclui as acima citadas como as “preferidas” pelos papagaios, seja para alimentação, descanso ou reprodução, em outras regiões do país.

A importância da composição da arborização urbana atual para a manutenção da população de papagaios da cidade foi também comprovada por uma análise de registros fotográficos disponíveis na internet. Coordenada pelo Instituto Passarinhar, que eu presido, a análise teve, como objetivo, mapear e quantificar os principais recursos utilizados pelos papagaios no município. Os dados resultaram em estudo científico encaminhado este mês para publicação.

Entre as principais espécies arbóreas que oferecem recursos essenciais aos papagaios livres na cidade, encontram-se árvores que disponibilizam alimento, como frutos e sementes, como as das famílias Meliaceae (cinamomo, por exemplo), Fabaceae (sibipirunas e paus-ferro), Anacardiaceae (aroeiras-pimenteiras e mangueiras) e Bignoniaceae (eritrinas e ipês). Além disso, os papagaios de São Paulo utilizam, quase que exclusivamente – tanto para descanso como para reprodução -, os troncos de eucaliptos e tipuanas.

Graças ao conhecimento científico e aos relatos e registros de cidadãos que amam as aves, é possível desvendar o mistério por trás dos papagaios de São Paulo e contar a história de dezenas de aves retiradas de seus habitats naturais, que sobreviveram por anos como prisioneiros até, um dia, escaparem para um mundo totalmente novo, superando obstáculos e dando início a uma nova população de papagaios verdadeiramente paulistanos.

Tudo indica que os papagaios-verdadeiros chegaram em São Paulo para ficar. Cenas como a registrada por uma das câmeras de trânsito da Rodovia Bandeirantes, no vídeo abaixo, têm tudo para se repetir por muitas e muitas vezes.

Foto: Sandro von Matter

4 comentários em “Como São Paulo se tornou a cidade dos mil papagaios?

  • 26 de novembro de 2016 em 8:02 PM
    Permalink

    Excelente matéria. Também o abacateiro serve de alimento para as catoritas e papagaios. Na escola em frente de casa existe um abacateiro enorme, cujos frutos no início da frutificação, são muito apreciados por essas aves. Uma festa todas as manhãs.

    Resposta
  • 1 de fevereiro de 2017 em 12:53 PM
    Permalink

    Muito bacana! Parabéns pela reportagem. Me tornei um defensor das aves livres, depois que meu papagaio fugiu. Nunca cortei suas asas e nem o mantinha preso. Tinha registro no Ibama. Fico feliz de vê-lo sempre voando pelo bairro em que moro em minha cidade, no interior de SP. A natureza resiste apesar de tudo! Graças a Deus!

    Resposta
    • 2 de fevereiro de 2021 em 10:02 AM
      Permalink

      Muito interessante aqui muita oportunidade adoro!

      Resposta
  • 11 de agosto de 2022 em 5:41 PM
    Permalink

    Aqui em São Bernardo, vejo eles se alimentando dos feijões de Erythrina mulungú, coquinho-babão da palmeira Jerivá, das semente de ingá flores do Pai-viola tucaneiro…

    Resposta

Deixe uma resposta

Sandro Von Matter

Pesquisador em ecologia e conservação, se dedica a investigar questões sobre o topo das florestas tropicais e as fascinantes interações entre animais e plantas. Hoje, à frente do Instituto Passarinhar, é um dos pioneiros em ciência cidadã no Brasil, e desenvolve projetos em conservação da biodiversidade e restauração ecológica, criando soluções para tornar os centros urbanos mais verdes.