Com ou sem carros, ‘Minhocão’ é 79% mais poluído que o resto da cidade de São Paulo


Enquanto se discute na Câmara Municipal se os ônibus devem ganhar mais 15 anos de prazo para abandonar o diesel, os moradores de São Paulo com vista para o Elevado João Goulart – o polêmico Minhocão -, respiram 79% de poluição a mais que a média da cidade. Os maiores culpados não são os carros e, sim, o agitado corredor de ônibus abaixo da estrutura que conecta leste e oeste do município.

É o que mostram dados do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP, obtidos exclusivamente para este blog – Urbanidades, do site Conexão Planeta -, que mediram a quantidade de material particulado, um tipo de poluição atmosférica.

Levantados ao longo de uma semana de medição ininterrupta da qualidade do ar, os números do estudo revelam que a média de Material Particulado 2,5 – partículas finas menores ou iguais a 2,5 μm (micrômetro) – encontrada na região da obra chega a ser de 3 a 4 vezes superiores ao limite de 25 μg/m³ da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e da Organização Mundial de Saúde (OMS), independente do horário. Ou seja, mesmo quando o Minhocão está fechado durante a semana para passagem de veículos, das 21h30 às 6h30, e aos sábados e domingos, os índices de poluição continuam altos e bem acima dos verificados no resto da capital paulista.

Na altura do elevado, a média averiguada de material particulado por metro cúbico foi de 83,47 μg/m³, 79% maior que a média de 46,5 μg/m³ registrada em toda a metrópole pela Cetesb em 2014, mesmo ano do levantamento da USP. O pico diário de emissões no Minhocão é às 16h, com média de 98,79 μg/m³, enquanto a mínima é de 73,8 μg/m³, às 23h.

Poluição atmosférica averiguada ao longo de uma semana no Minhocão pela Faculdade de Medicina da USP

“Isso evidencia o que chamamos de ‘efeito tampão’ do Minhocão, que facilita a concentração local de poluição. O pouco espaço entre os prédios e o elevado e as fileiras de construções contíguas na sua extensão impedem a dispersão do material particulado, resultante da queima incompleta dos combustíveis fósseis pelos veículos”, explica Marco Martins, responsável técnico pelo estudo e hoje pesquisador associado da T.H. Chan School of Public Health da Universidade de Harvard, nos EUA. De acordo com ele, mais do que os carros que passam pelo Minhocão em seu horário de funcionamento, o grande vilão do ar no Minhocão é o diesel com alto teor de enxofre utilizado pelos milhares de ônibus municipais que passam lá por baixo, situação que o tão desejado “Parque Minhocão” não teria como sanear.

“Só isso explica a elevada quantidade de material particulado encontrada no ar local, inclusive quando o Minhocão está fechado. Para além da discussão que se faz sobre demolição ou criação de um parque, a mudança de matriz energética dos ônibus para combustíveis mais limpos ou motores elétricos é imperativa para encontrar uma solução para os moradores da região”, conta ele, que também mediu a poluição sonora no local, outro problema do “tampão”. Sem surpresas, os ruídos medidos na região estão sempre acima do limite da Cetesb, que é de 55 decibéis, em qualquer horário (veja no gráfico abaixo). “Isso agrava problemas de estresse de quem mora ali e pode piorar quadros de pressão alta e insônia.” 

Poluição sonora averiguada ao longo de uma semana no Minhocão pela Faculdade de Medicina da USP

A tese do pesquisador sobre os ônibus vai no sentido do que se sabe sobre a composição atmosférica de São Paulo, onde se calcula que mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa se originam nos veículos motorizados. Os 15 mil ônibus municipais, que representam apenas 0,5% de toda a frota de 8,3 milhões de automotores, são responsáveis por pelo menos 47% do material particulado que polui o ar da cidade, conforme o Inventário do Sistema de Mobilidade Urbana da Secretaria Municipal de Transportes.

Sob a ótica da saúde pública, a situação é gravíssima. Segundo estimativa do Instituto Saúde e Sustentabilidade, 4.700 vidas são perdidas todos os anos na Região Metropolitana por conta de problemas relacionados à inalação de material particulado. “Para quem mora próximo ao Minhocão e passa por lá diariamente, isso certamente se intensifica”, argumenta Paulo Hilário Nascimento Saldiva, patologista especializado em poluição atmosférica que coordenou a pesquisa e é diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP. “A maior parte dos estudos diz que, para cada 10 μg/m³ de material particulado fino no ar, o risco de infarto aumento em 8%, o de câncer de pulmão em 9% e a mortalidade por todas as causas aumenta em 6%. A poluição do ar veicular reproduz em pequena escala tudo que está no maço de cigarro”, afirma.

Retrocesso legal

Se fosse cumprido o que estipula a Lei nº 14.933 de 2009, que institui a Política Municipal de Mudanças Climáticas, a poluição dos ônibus já seria, hoje, uma questão em grande parte resolvida. No seu texto, as empresas contratadas para o transporte público sobre rodas deveriam progressivamente substituir seus veículos movidos a diesel mineral por modelos híbridos ou elétricos não poluentes até 2018. Mas, perto do prazo, apenas 4% da frota utiliza combustíveis limpos atualmente. As dificuldades em realizar uma nova licitação desde 2013, a suposta inviabilidade financeira dos prestadores de serviço e, principalmente, a falta de mecanismos que incentivem mudança da matriz energética são consideradas as causas para o atraso.

A questão ressurgiu recentemente com o projeto de lei (PL) 300/17, encabeçado pelo presidente da Câmara, Milton Leite (DEM), e o vereador Gilberto Natalini (PV) para estender o prazo da mudança da matriz energética dos ônibus para os próximos 15 anos. A alteração proposta prevê nos primeiros dez anos um corte de 50% na emissão de dióxido de carbono, 60% em óxidos de nitrogênio e de 80% em material particulado. Apelidado de “PL da Poluição”, o projeto encontra resistência de grupos como o Greenpeace e de especialistas, caso de Saldiva.

“Esse projeto revela como o nosso parlamento municipal anda para trás. O problema são os locais onde a poluição das partículas será muito maior. Os vereadores, aqueles que não honram a casa, estão basicamente subsidiando uma política que favorece alguns setores em detrimento da saúde dos outros, o que de um ponto de vista ético e de saúde não se justifica em hipótese alguma”, esclarece o acadêmico, que saiu do conselho consultivo da Secretaria de Verde e Meio Ambiente no começo do ano após a alteração dos limites de velocidade nas marginais pela gestão do tucano João Dória. “O que é discutido na Câmara Municipal não leva em conta os aspectos de saúde. Isso não aconteceria em um país onde o nível de cidadania fosse um pouco maior.” 

Fotos: Flávio Forner/ Xibé (destaque) e Tayná Alencar/Flickr (ônibus)

Um comentário em “Com ou sem carros, ‘Minhocão’ é 79% mais poluído que o resto da cidade de São Paulo

  • 23 de outubro de 2017 em 2:24 PM
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    Como simpatizante do Parque Minhocão, senti falta de saber qual seria o impacto de corredores e paredes verdes na dispersão de poluentes, já que a diminuição dos mesmos parece continuar distante.

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Julio Lamas

É repórter e escreve sobre sustentabilidade desde 2012.