A caça de animais silvestres pode ajudar na conservação de espécies ameaçadas de extinção?

A caça de animais silvestres é proibida no Brasil pela Lei de Proteção à Fauna (Lei 5.197/67), mas nunca deixou de existir e é um dos principais problemas enfrentados pelas espécies ameaçadas de extinção. Agora, o Projeto de Lei 6268/16, de autoria do deputado Valdir Colatto (PMDB-SC), prevê a regulamentação da atividade no país. O assunto é polêmico e existe um abaixo assinado circulando, que, até a conclusão deste post, reunia mais de 130 mil assinaturas. No momento, a proposta está sujeita à apreciação do plenário .

O Projeto de Lei também retira da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) o agravamento até o triplo da pena de detenção de seis meses a um ano, e multa, por matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar animais sem licença – se isso for feito durante caça profissional -, além de autorizar a criação de reservas próprias para caça esportiva em propriedades privadas e determinar que 30% do lucro líquido anual deve ser aplicado em planos para recuperar e proteger espécies da fauna silvestre brasileira.

Mas será que esse modelo funciona? Será que a caça de animais silvestres pode ajudar na conservação de espécies ameaçadas de extinção?

Para responder a essas perguntas gostaria de voltar ao dia 7 de agosto de 2015, o dia da morte de Cecil, o mais querido e mais fotografado leão do Zimbábue, na África.

Uma carcaça foi utilizada para atrair o felino para fora do Parque Nacional Hwange, onde a caça esportiva é proibida. Logo em seguida, ele foi alvejado com uma flecha. Cecil conseguiu escapar, resistiu por dois dias, mas foi rastreado pelos caçadores e morto com um tiro na concessão de caça Gwaai. A cabeça e a pele foram levadas como troféus pelo mentor da caça.

O episódio chocou pessoas em várias partes do mundo. Companhias aéreas proibiram o transporte de troféus de caça em seus voos e houve uma onda de doações para grupos que lutam pela conservação da natureza.


Cecil, o leão mais amado do Zimbábue foi morto por caçadores esportivos 

O impacto da caça esportiva nos bandos de leões

Entre 1999 e 2004, estudo da Wildlife Conservation Research Unit at Oxford University, liderado pelo Dr. Andrew Loveridge, analisou o impacto da caça esportiva na dinâmica de uma população de leões do Parque Nacional Hwange (Para saber mais acesse: The impact of sport-hunting on the population dynamics of an African lion population in a protected area).

62 leões receberam colares com GPS. 34 leões morreram durante o estudo. 24 foram baleados em áreas próximas ao parque por caçadores esportivos (13 machos adultos, 5 fêmeas adultas, 6 machos sub-adultos). A caça esportiva foi responsável pela morte de 72% dos machos adultos estudados. A proporção entre machos e fêmeas que era de 1:3 passou para 1:6 em favor das fêmeas. Os territórios deixados pelos leões que morreram foram ocupados por leões que migraram de áreas próximas e o infanticídio foi observado.

Outro estudo (Socio-spatial behaviour of an African lion population following perturbation by sport hunting), realizado no Hwange, analisou o comportamento da população de leões antes e após da legalização da caça esportiva nos arredores do parque. As evidências sugerem que bandos de leões que são perturbados por esse tipo de caça apresentam movimentos erráticos, tendo probabilidade maior de deixar o parque e, consequentemente, são mais propensos a entrar em conflito com humanos que moram nas fronteiras da reserva.

A caça de animais silvestres no Brasil

Pesquisadores do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, utilizaram conteúdos publicados no YouTube para avaliar a ocorrência da caça esportiva no Brasil, identificar o perfil dos caçadores e verificar a opinião dos usuários da internet sobre o assunto. Os resultados, publicados no volume 20 da Revista Ecology Society, são alarmantes

Tatus estão entre os animais mais caçados no Brasil em vídeos do Youtube

O estudo avaliou 383 vídeos, com mais de 15 milhões de visualizações no total. A maior parte foi publicada entre os meses de julho e dezembro, coincidindo com os dois principais períodos de férias no país. A maioria foi produzida no Cerrado e aproximadamente 70% mostrava eventos de perseguição e morte de animais silvestres (principalmente de pacas e tatus). Além disso, as armas identificadas nos vídeos indicam que os caçadores gastam grandes quantidades de dinheiro em uma caçada.

A maioria dos comentários encontrados nos vídeos (2.893) é a favor da caça esportiva. As discussões analisadas sugerem que os caçadores esportivos empregam estratégias informais de manejo para manter um estoque de animais para futuras caçadas e questionam as restrições da política ambiental brasileira.

Segundo o artigo, os resultados indicam que os caçadores esportivos brasileiros são residentes urbanos de bom poder aquisitivo que viajam para áreas rurais para caçar, o que contrasta com estudos anteriores sobre a caça no Brasil. “Percebemos que a maioria dos vídeos apresenta eventos de caça esportiva, aquela realizada pelo prazer da caçada e de consumir carne de caça, e não por necessidade de comida, por subsistência, a qual é garantida pela lei”, disse Hani Bizri, um dos autores do artigo, em entrevista para a Assessoria de Comunicação do Instituto Mamirauá.

A caça esportiva regulamentada

Mesmo assim, ainda existem argumentos a favor da caça esportiva. Reservas de caça estabelecem cotas e apenas alguns animais podem ser abatidos por ano. Alguns grupos de conservação, incluindo o WWF (veja a página da ONG sobre o assunto), apoiam a caça esportiva regulamentada. Os defensores dizem que a atividade levanta muito dinheiro, necessário para a conservação das espécies, e pode ajudar no gerenciamento das populações se as autoridades exigirem que os caçadores escolham animais que perderam a capacidade de se reproduzir ou que possam inibir a reprodução de outros ao seu redor.

Autorizações para a caça esportiva são permitidas por tratados internacionais, desde que uma parte significativa dos recursos seja destinada à conservação das espécies na natureza e que seja comprovado por estudos científicos que a morte dos indivíduos selecionados não irá colocar a espécie em risco. Porém, os críticos dizem que a prática está sujeita à corrupção, alimenta a procura de produtos de animais selvagens no mercado negro e as medidas regulatórias são muito difíceis de serem aplicadas na prática (a morte de Cecil é um exemplo disso).

Para mim, é difícil acreditar na ideia de matar animais para ajudar na conservação. Fui guia de ecoturismo e já visitei diferentes países em busca de diferentes espécies. A foto da onça-pintada, que abre este post, foi tirada na Amazônia, durante uma das experiências mais fantásticas da minha vida. Muitos turistas estavam comigo e também registraram o momento. Todos ficaram hospedados em um hotel em que a diária do quarto mais barato custa mais de R$ 2 mil.

Como a onça não foi abatida, os turistas compartilharam suas imagens e despertaram a curiosidade de outras pessoas que decidiram visitar a região. Por isso tenho uma convicção: um animal silvestre vivo tem muito mais valor do que um animal morto em uma caçada.

Leia também:
Projeto Papagaio-Verdadeiro contra tráfico de animais silvestres

Fotos: Onça e tatu, de Fábio Paschoal; leão Cecil, reprodução do YouTube

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7 comentários em “A caça de animais silvestres pode ajudar na conservação de espécies ameaçadas de extinção?

  • 14 de fevereiro de 2017 em 4:27 PM
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    Concordo plenamente ! Caçar hoje em dia nem para a subsistência , existe gado em toda parte …pescar tbem deve ter controle , agora quer ver e fotografar os animais aí não perturbando-os demasiadamentearbe e a melhor forma de captura-los ou seja você leva a foto real , faz um pôster ou um quadro e põe na parede se quiser , sem matança. Se quiser comer carne , mate um frango …

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  • 15 de fevereiro de 2017 em 3:05 PM
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    Muito bom o texto, Fabio!

    Nessas horas, as pessoas parecem simplesmente esquecer sobre a corrupção no Brasil e a tendência a desrespeitar leis deliberadamente. A caça já é praticada. Com a “regulamentação” e a criação de áreas que incentivam a prática, vai aumentar perigosamente e sem qualquer controle (sejamos realistas). Repassar verbas para qualquer causa no Brasil é uma grande piada, pronta para fracassar, não é? Ou o repasse não vai acontecer plenamente, ou a verba não será devidamente implementada. Enquanto isso, os animais silvestres ficarão sujeitos a uma morte desnecessária e brutal. Até o abate de animais de produção segue regras de bem-estar para garantir a insensibilização imediata (e adivinha quantos abatedouros seguem adequadamente o procedimento, apesar de existir a legislação). Como alguém pode defender que a nossa fauna, os animais silvestres, sejam submetidos a tiros e outras práticas crueis? Que muitos, como o Cecil, acabem feridos e agonizando por dias, vítimas da má pontaria de caçadores profissionais. A maioria não morre de imediato, é ferida e depois abatida. Além de toda a discussão prática disso no Brasil e sobre a conservação, é simplesmente cruel com esses animais. Inaceitável.

    O Brasil tem potencial de lucrar muito com sua biodiversidade. Organizando ainda mais o ecoturismo e a observação de animais, garantindo acesso e infraestrutura a essas áreas, investindo. Não precisamos atrair caçadores profissionais e incentivar práticas cruéis contra animais, isso não tem nada a ver com subsistência ou tradição. É pelo simples prazer de pegar uma arma e matar. Precisamos proteger nossos animais e usar a biodiversidade brasileira de forma responsável, que realmente preserve e promova interações positivas. Esse projeto de lei é ridículo.

    Parabéns pelo texto. Vou compartilhar!

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  • 16 de fevereiro de 2017 em 5:59 PM
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    Interessante essa análise do Fábio Paschoal, uma abordagem clara e objetiva. Fiquei estupefato em saber que o WWF apóia a caça esportiva. Isso nunca funcionaria no Brasil, ao menos nos moldes em que entidades ambientalistas possam imaginar. Em quatro anos de fiscalização ininterrupta na área do Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, em Ubatuba, entre 1985 e 1989, pudemos apreender centenas de armas e petrechos de caça, sem contar revólveres e pistolas. Desses flagrantes, cálculo que nem dez por cento envolvia pessoas pobres, dos quais se poderia dizer que caçavam por necessidade. Noventa por cento era de classe média a alta, incluindo advogados, funcionários públicos e até policiais. Havia grupos que contratavam tropas de burros para o transporte de mantimentos e petrechos, desde as cidades do Vale do Paraiba até as escarpas litorâneas, no interior da unidade de conservação. Os caçadores revelavam que usavam aquelas áreas para caça há décadas, mesmo após a criação do parque, em 1977. Abatiam desde macucos até pacas, macacos e jaguatiricas, pelo simples gosto de matar. Era o divertimento das férias de julho e janeiro, períodos do maior número de apreensões. Por essa experiência não creio, absolutamente, que possa haver caça regulamentada no Brasil. Os órgãos públicos de fiscalização nem de longe teriam capacidade de manter a matança dentro das regras.

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  • 19 de março de 2017 em 12:31 PM
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    Esse assunto não deveria ser nem discutido. Qualquer tipo de caça (legal ou ilegal) jamais ajudará a conservação de uma espécie e da preservação de um ecossistema ameaçado. Apenas deputados com interesses sombrios – como esse senhor – podem querer modificar a legislação. A desculpa que o dinheiro arrecadado com a caça legal iria para a conservação é tão imbecil que nem vale a pena discutir. Porém, do jeito que está esse país, é bem capaz que esse projeto de lei seja aprovado em alguma madrugada maligna. Como a anistia do Caixa 2…

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  • 19 de março de 2017 em 8:05 PM
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    Que texto excelente. Muito esclarecedor! Parabéns !

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  • 19 de março de 2017 em 8:14 PM
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    A caça para conservação existe, sim, e funciona! Inclusive ela tem uma regulamentação na IUCN (pesquisem caça para troféus IUCN). Mas funciona em outros países.
    Bem, agora, se tratando de Brasil, acho bastante complicado. Aqui todo mundo dá um “jeitinho” pra fazer algo errado e não acontecer nada… Só vai ser mais um cofrinho para desviarem a verba.

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  • 21 de março de 2017 em 3:44 PM
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    Maravilhoso artigo! Além disso devemos lembrar que junto da legalização da caça vem a venda de armas, a incitação à violência, a deseducação de crianças e adolescentes, e outras mazelas. No Brasil, o javali está sendo utilizado como desculpa para se defender uma atividade que é baseada em primitivismo e sadismo porém, como mencionado no texto “as discussões analisadas sugerem que os caçadores esportivos empregam estratégias informais de manejo para manter um estoque de animais para futuras caçadas” – para caçadores não interessa eliminar uma espécie e sim manter um estoque razoável para continuar seu prazer. Também, a liberação da caça vem sempre junto com o questionamento de restrições ambientais e restrição de garantias de bem-estar animal. Mas vivemos no país um momento tenebroso onde, no congresso nacional, ruralistas se unem para defender todo tipo de crueldade contra animais – vaquejadas, rodeios e caça principalmente.

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Fábio Paschoal

Apaixonado por animais desde criança, logo decidiu estudar Biologia, formando-se pela USP em 2005. É técnico em turismo e trabalhou como guia a partir de 2008, tendo conduzido, por três anos, passeios de ecoturismo no Pantanal e na Amazônia. De 2011 até 2016, foi repórter e editor do site da revista National Geographic Brasil, onde nasceu o blog Curiosidade Animal (desde dezembro de 2016, aqui, no Conexão Planeta).