Brincar: sentidos de esperança e vínculo

Nas férias, a maioria das famílias se desdobra para conciliar o trabalho com o cuidado e entretenimento das crianças. Nem sempre usamos este momento para silenciar e observar. Na maioria das vezes, ocupamos a rotina, antes destinada à escola, com viagens, passeios, idas à shopping, casa de parentes, programas culturais e muitas horas de telas – televisão, celular, computador, tablet. Quem tem filho sabe o desafio – e a expectativa – que esse período do ano traz. No entanto, uma coisa é certa: seria um presente para todos – bebês, crianças, adolescentes e adultos – menos atividades e mais espaço e tempo livre.

Quanto aprenderíamos se observássemos mais as crianças! Logo no primeiro ano de vida ela conquista com muito esforço a capacidade de andar. Ao se colocar neste árduo desafio, o bebê ensina ao adulto a força da vontade. Ele cai e se levanta, cai e se levanta, quantas vezes forem necessárias para o alcance de seu objetivo. Os tombos, mesmo que acompanhados de machucados e dor, não afastam a determinação de conquistar com entusiasmo e persistência a capacidade de andar. De mover-se com autonomia, onde o erro e a repetição são bases para um novo aprendizado, assim como o tempo alargado da experiência. 

Com férias sem agenda programada, mais propícias ao tempo e espaço alargados, ganharíamos muito. Convido-os a sentar em uma praça e observar crianças num tanque de areia. Poucas coisas se comparam ao brilho dos olhos de uma criança entregue ao brincar! Naquele gesto aparentemente desprovido de seriedade, ela exerce a força de vontade e de imaginação criadora. Ninguém brinca por obrigação. Brincar é agir em liberdade, a partir de si mesmo, à procura da comunhão com o outro, com o mundo e consigo. Ele é uma linguagem, que parte da espontaneidade do gesto e da inteireza. De uma qualidade de presença – de estar no aqui e agora –  entregue ao corpo e à materialidade do mundo.

Ao brincar de casinha, comidinha, pião, ciranda, cinco pedrinhas, a criança reproduz e transmuta as substâncias do mundo. A vida material e simbólica ganham novos contornos através da imaginação da criança. Um simples e uniforme tanque de  areia pode transformar-se em rios navegáveis ou intransponíveis; castelos de princesas; fortes de piratas; bolos com ternuras de avós e belezas das flores. E é justo ali, no encontro do corpo com a matéria, que a alma se expressa na sua verdade e potência. Revelando a quem estiver atento a grandeza da humanidade num instante. Nascemos para criar e recriar o mundo e a humanidade! Como tão bem alumiou João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, “um menino nasceu – o mundo tornou a começar!”.

Ao brincar a criança (re)cria cultura. Ao longo da história as expressões das crianças são preservadas pela tradição oral e escrita, pelos adultos brincantes e pela troca de saberes entre as próprias crianças. Essa cultura das crianças, que tem no brincar sua fonte, une diferentes gerações e territórios, criando um lastro comum e eterno. Ter acesso a esse patrimônio material e simbólico da infância deve ser um direito de todas as crianças, assim como de vivenciar em plenitude essa fase da vida, uma vez que sabemos que ser criança não significa necessariamente ter a possibilidade real de viver a infância.

Como adultos, vivenciamos na pele quão difícil é encontrar em nosso dia a dia esse estado de potência, de inventividade, de alegria e de saúde que o brincar move nas crianças. O trabalho, outrora tão próximo das artesanias, do fazer com as mãos, tornou-se cada vez mais abstrato e distante da experiência e da materialidade do mundo. Poucos têm o privilégio de ter o trabalho como espaço de autorrealização e aprendizado, que dirá de prazer. Nosso modelo de vida extremamente desigual e consumista tem nos afastado de uma saúde física, psíquica e espiritual, e de uma relação empática com o mundo. Não à toa as férias terem se tornado cada vez mais objeto de consumo, sendo refúgio de frustrações, expectativas e devaneios de esperança e bem viver. 

Lydia Hortélio, grande mestra e pesquisadora da cultura das infâncias, está certa ao nos acordar para a importância da criança na transformação da humanidade e do mundo. Diz ela, “a revolução que falta, que é a revolução da criança. É a revolução do brincar. Do restabelecimento do ser humano com toda a sua grandeza” (a fala na íntegra está disponível aqui). No auge dos seus 86 anos, Lydia continua sabendo “ver menino”, “para saber menino”, como ela diz. 

Olhar as crianças é um refúgio para a alma, um respiro no cotidiano, tantas vezes carente de sentido. As crianças, e os próprios filhos, podem nos ensinar muito sobre os encantamentos da vida e sobre a nossa potência como pais, como adultos em processo permanente de auto-educação. Aproveitemos as férias para este descolamento do cotidiano, para um encontro com a criança. “Ver hoje menino” pode até desaguar em memórias de infância, da criança que você foi e ainda pulsa em algum lugar da sua existência. Sobre isso, recomendo um bonito filme, o Tarja Branca (disponível gratuitamente na plataforma Videocamp).

Observemos e aprendamos assim com as crianças! Elas precisam de tempo e espaço para serem. Para virem ao mundo. Para alumiar a vida com sentidos de esperança e alegria. Só assim caminharemos como humanidade para uma comunhão maior com a vida. 

Por fim, deixo um último convite: se estiver por São Paulo aproveite o finzinho das férias escolares para ir sozinho, com amigos ou com as crianças à Ocupação Lydia Hortélioaté 8 de setembro no Itaú Cultural. Dê a você esse presente, um mergulho vitalizante e inspirador nos gestos, músicas e silêncios dos meninos e meninas brincantes do Brasil.

Foto: Gary Scott / Free Images

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Ana Claudia Arruda Leite

Mãe, pedagoga e Mestre em Ciências Sociais da Educação. Desde 2013 trabalha no Instituto Alana, onde foi Diretora de Educação e Cultura da Infância e é consultora. Recentemente, desenvolveu pesquisa de escuta de crianças, com o educador Gandhy Piorski, nas cinco regiões do Brasil