Brincar de cientista: morte e vida no quintal


Aos quatro anos e meio, meu filho troca qualquer passeio pela sua atividade favorita no quintal: brincar de cientista. Ele aprendeu essa brincadeira com sua irmã mais velha que, por sua vez, a inventou brincando com nossa vizinha.

Brincar de cientista consiste em sair em busca de toda e qualquer criatura viva que habite o quintal, revirando pedras, cavando buracos, desmanchando vasos, para então colocá-las em uma “casa”, alimentá-las e dar-lhes de beber. Cuidar delas, cutucá-las. Tirar da casa, por de volta. Cobrir com terra, misturar com água. E, claro, nunca deixá-las fugir.

A miríade de criaturas que já foi alvo dos meus pequenos cientistas e seus amigos incluem: formigas, tatus-bola, lacraias, minhocas, mariposas, borboletas, lagartas, aranhas e girinos. Todas sobrevivem ao seu escrutínio e à curiosidade científica? Não, há algumas mortes no caminho. Assim como há perdas quando eles resolvem coletar flores diretamente das árvores para fazer algum perfume ou enfeitar um ‘bolo de terra’.

O que por milênios foi considerado aceitável durante a infância – afinal, descendemos de povos caçadores e coletores! –, hoje é tabu. As crianças são ensinadas, desde muito cedo, que matar animais e coletar plantas e flores não é certo, mesmo que o almoço seja frango – uma das espécies mais maltratadas em toda a história da humanidade.

É surpreendente observar como as fontes de alimento e a natureza real estão cada vez mais no plano do abstrato para as populações urbanas, ao mesmo tempo que cultivamos uma atitude mais protetora em relação às espécies não domesticadas – como os tatus-bola e as joaninhas. Ou as tememos excessivamente, como aos carrapatos ou aranhas.

Entretanto, as crianças sentem uma atração quase irresistível por toda e qualquer criatura viva, num misto de curiosidade e repulsa, e desejam interagir com elas, observá-las, tocá-las, cuidar delas, colecioná-las. Permitir que elas tenham essas experiências as aproxima do mundo natural de uma forma que vai muito além do conhecimento cognitivo que elas ganham quando vêm figuras de joaninhas e sapos num livro, ou assistem a um programa sobre elefantes na TV.

Numa entrevista recente publicada pelo projeto Criança e Natureza, do Instituto Alana, o ornitólogo Luciano Lima lembra de sua infância como caçador de passarinhos, ao mesmo tempo que conclui que as crianças de hoje perseguem muito menos as aves, consequência de uma infância cada vez mais distante do mundo natural e da falta de liberdade que isso requer.

Segundo Richard Louv, um dos maiores especialistas na relação criança e natureza, isso tem um lado bom, é claro, pois atualmente as crianças são menos propensas a matar por diversão. O lado ruim é que as crianças estão tão desconectadas da natureza, que a idealizam ou a associam ao medo – dois lados da mesma moeda –, uma vez que temos a tendência de temer ou romantizar o desconhecido.

Dois meses atrás, minha filha completou nove anos e pediu uma viagem de aniversário. Fomos acampar numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) na Mata Atlântica, e ela convidou duas amigas, de dez e onze anos de idade. Passamos dois dias à beira de um rio repleto de girinos. Enquanto eu me aquecia ao sol do inverno e observava aquelas quatro crianças, entre quatro e onze anos, entretidas durante horas caçando girinos e manipulando-os, pensei que é preciso muito pouco para ter a atenção e o interesse genuíno das crianças: água corrente e um punhado de girinos. E que, em momentos como esse, de profunda conexão, podemos entender por que a palavra brincar deriva do vocábulo brincos que, por sua vez vem da raiz latina vincro-vinculare. Vínculo que também é forjado por meio de armadilhas, capturas, amor e morte (leia O vínculo com o espaço melhora o nosso olhar. Na natureza então…).

Eu acredito que, a menos que as crianças colecionem e manipulem exemplares de espécies ameaçadas de extinção, os benefícios dessas experiências diretas superam os danos à natureza. É como destinar um parque nacional exclusivamente à conservação, ou abrir algumas áreas à visitação. A visitação certamente causa impactos significativos, mas ao mesmo tempo proporciona ganhos imensos, pois as unidades de conservação, assim como os passarinhos, tatus, flores e outras espécies, só terão defensores se forem alvo da experiência direta das pessoas.

Vamos permitir que as crianças façam bolos com cobertura de flores, cutuquem formigueiros, cacem tatus-bola e colecionem minhocas? A natureza pode suportar essas perdas e nós adultos podemos, aos poucos, ensinar às crianças o valor da vida e o respeito pelas demais espécies que dividem a Terra conosco. Aqui em casa temos um combinado: ao final do dia os bichos devem ser soltos. E procuramos conversar sobre como as crianças se sentiriam se fossem elas o alvo da brincadeira. Essas duas estratégias têm ajudado, mas certamente não são as únicas.

E você, como concilia experiências diretas e significativas com o respeito aos outros seres vivos?

Mestre Sebastião Biano disse, certa vez, “Prestem atenção! Aquilo com o qual você mais gosta de brincar é o que vai ser quando crescer”. E se isso é verdade, um dia, esse menino que passa as tardes cavocando o quintal em busca de bichinhos, pode se tornar um cientista, assim como o caçador de passarinhos, Luciano, se tornou ornitólogo. Pensando bem, ele já é.

Foto: Maria Isabel Amando de Barros

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Maria Isabel Amando de Barros

Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.