Brincadeiras ao ar livre estão sendo dizimadas da infância

Brincadeiras ao ar livre estão sendo dizimadas da infância

O cheiro da chuva caindo na grama. A sensação do pé afundando na lama. A textura das folhas e flores do quintal. Olhar para o céu e ver que animais as nuvens formam. Ou então, a alegria em chegar ao topo de árvore. Se você tem mais de 30 anos, talvez tenha algumas destas lembranças inesquecíveis da infância. Mas para milhões de crianças ao redor do mundo, uma das épocas mais importantes de sua existência está sendo vivida bem longe da natureza e das experiências incríveis que ela oferece.

Uma pesquisa realizada pela organização britânica National Trust revelou que, comparado a seus pais, as crianças daquele país passam 50% menos tempo brincando ao ar livre.

É fácil de imaginar que, se conduzido no Brasil, o estudo não teria um resultado muito diferente. É óbvio, que hoje, meninos e meninas vivem em uma realidade completamente diferente das gerações anteriores.

Primeiramente, cada vez mais, a população mundial mora em centros urbanos, com menos possibilidade de estar em contato com áreas verdes. São famílias que, muitas vezes, vivem em prédios, e com filhos, que jamais tiveram a oportunidade de brincar num quintal, de visitar um sítio, uma fazenda, ou sequer, ver como frutas e hortaliças são plantadas em um horta. O contato máximo com a natureza ocorre quando há um passeio em parques, no final de semana, ou se o orçamento permitir, na viagem de férias para a praia.

Além disso, as crianças que vieram ao mundo a partir das décadas de 90 ou ano 2000 nasceram no boom da era da internet. Para estes meninos e meninas (e adolescentes e jovens), é simplesmente inconcebível pensar numa vida sem games, computador, celular, tablete, Facebook, Snapchat, Youtube … E tantos outros atrativos e viciantes gadgets do mundo digital.

Apesar de 83% dos pais britânicos, que participaram do levantamento, acreditarem que o uso da tecnologia é importante para o processo de aprendizagem de seus filhos, nove em cada dez deles preferiria que os filhos brincassem mais ao ar livre, desenvolvendo uma conexão com a natureza.

A pesquisa Natural Childhood (Infância Natural, em tradução livre) fala do que se estabeleceu chamar hoje de Transtorno do Déficit de Natureza. De acordo com o trabalho, os pequenos britânicos passam, no máximo, quatro horas por semana brincando fora de casa.

Escrita pelo historiador e naturalista  Stephen Moss, o estudo cita logo, no prólogo, o escritor Richard  Louv que afirma que a falta de conexão do ser humano com a natureza provoca, entre outros problemas, a redução de nossos sentidos; déficit de atenção e maiores riscos de desenvolvimento de doenças psicológicas e físicas.

Entre as doenças mencionadas na pesquisa estão o aumento da incidência de miopia entre as crianças (não se olha mais no horizonte, somente no monitor a dois palmos dos olhos); capacidade respiratória ruim (não há corridas nem brincadeiras que exijam esforço físico) e por fim, a crescente obesidade infantil: três em cada dez crianças na Inglaterra, entre 2 e 15 anos, estão acima do peso ou obesas (caso a situação se mantenha assim nos próximos anos, até 2050 mais da metade dos adultos e 25% das crianças serão obesas).

Apesar da culpa pela falta do contato com a natureza recair sempre sobre a tecnologia, Moss aponta que os adultos têm uma dose de responsabilidade no comportamento de seus filhos. A geração “helicóptero”de pais e mães tem a necessidade, beirando quase obsessão, de monitorar (e por vezes, restringir e cercear) todas as atividades infantis. Para eles, parquinho deve ser de piso de borracha e carrinho de rolimã é um brinquedo por demais perigoso.

Na década de 70, no Reino Unido, aproximadamente 80% das crianças entre 7 e 8 anos de idade iam para a escola sozinhas (eu ia em Curitiba!), caminhando com seus colegas e amigos. Duas décadas depois, menos de 10% o faz.

Enquanto no passado, ser mandado pelos pais para o quarto era um castigo, para os pequenos da geração internet, a ordem pode ser a realização de um sonho. Natural Childhood constatou que as crianças inglesas assistem, por semana, 17 horas de televisão (média de mais de 3 horas diárias) e 20 horas online (predominantemente nas redes sociais). Já os adolescentes – entre 11 e 15 anos – ficam 7,5 horas por dia na frente de uma tela.

É bom que fique claro que a pesquisa britânica não está demonizando a tecnologia. É de consenso comum que o acesso e a democratização à informação trazido por ela traz muitos benefícios. Todavia, como tudo na vida, limites devem ser estabelecidos. Ninguém em sã consciência pode acreditar que um adolescente gastar 7,5 horas por dia interagindo com um computador, tablete ou celular é algo saudável.

E qual é o caminho sugerido por Natural Childhood para trazer nossos pequenos de volta para o quintal, o jardim e o universo fora das quatro paredes de casa? A resposta não é simples e nem fácil. A sociedade como um todo precisa estimular a reconexão das crianças com a natureza: governos, escolas, professores. Os planejadores urbanos precisam priorizar em seus planos diretores a construção de mais áreas verdes e facilitar o acesso a parques e espaços de lazer. Já as escolas necessitam rever seus conceitos e incentivar a realização de mais aulas ao ar livre, junto à natureza.

Não há dúvida, todavia, que é a família que possui um papel vital nesta mudança de reconexão com o meio ambiente. Não temos como proteger nossos filhos de todos os riscos. Se eles caírem da árvore, vão aprender a levantar. Se o inseto picar, vão descobrir que a dor passará. A vida é um aprendizado constante e só assim conseguimos ganhar confiança e maturidade. Os pais devem estar ao lado para guiar, mas não podem caminhar por seus filhos.

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Foto: divulgação National Trust/John Millar

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Suzana Camargo

Jornalista, já passou por rádio, TV, revista e internet. Foi editora de jornalismo da Rede Globo, em Curitiba, onde trabalhou durante 6 anos. Entre 2007 e 2011, morou na Suíça, de onde colaborou para publicações brasileiras, entre elas, Exame, Claudia, Elle, Superinteressante e Planeta Sustentável. Desde 2008 , escreve sobre temas como mudanças climáticas, energias renováveis e meio ambiente. Depois de dois anos e meio em Londres, vive agora em Washington D.C.