A vergonhosa passagem

Uma realidade mais dura do que aquela da baladinha da moda que afoga todo mundo no mesmo funil. Não é apenas sobre estar esmagada contra a porta do ônibus. Nem sobre não conseguir ler no coletivo por causa das mudanças de marcha de uma caixa de câmbio caindo aos pedaços. Não é sobre querer se distrair com uma música no fone de ouvido, mas ter que acompanhar, ao fundo, o barulho ritmado da freada no talo a cada ponto. Nem falo do calor abafado em dias de verão (e de chuva!).

Não cito a espera interminável no ponto ermo e escuro. Nem os escrotos aproveitadores que se esfregam e que deveriam ter a atitude apagada do mapa com uma potente borracha. Falo é da cara de pau da administração pública de autorizar o aumento da passagem para um transporte coletivo desse naipe. Borracha neles, também…

Que jogo desigual. R$ 4,25 a passagem em Curitiba. A mais cara do Brasil. Não basta ter lucro com R$ 3,70. Tem que ter lucrão, tem que ganhar bastante nas costas de quem vem saindo no prejuízo desde sempre. Lucro abusivo esse que se calcula com base na falta de visão e cuidado com a população. R$ 255 para ir e voltar todo dia. Ah! Mas você não está contando os aposentados, os estudantes (que precisam de atestado de absoluta pobreza para conseguir benefício), os trabalhadores que têm o passe pago… Pois olha o que “sobra”: a massa de trabalhadores informais, desempregados. Um enorme resto, tratado como apenas um resto.

No País, 10,3 milhões dos trabalhadores ocupados ganham até meio salário mínimo. Isso dá R$ 440… No primeiro trimestre de 2016 esse número representava 10,9% da População Economicamente Ativa (PEA).

Os dados são da Pnad Contínua e foram compilados pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe). Eles apontam ainda que 5,5 milhões recebem apenas um quarto do salário mínimo, o equivalente a uma renda mensal inferior a R$ 220. Menos do que a quantia gasta para tomar o ônibus em Curitiba durante um mês.

Uma administração que tem a visão retrógrada de não incentivar o uso do transporte coletivo na Curitiba do sul maravilha e cede à pressão dos empresários é de envergonhar. Na era dos congestionamentos, do aquecimento global é como andar para trás. O que resta refletido no espelho dessa gente?

É massacre físico e psicológico esse a que se submetem os usuários do transporte coletivo. Não vou dizer que ligação ônibus-trabalhador é umbilical… Nenês nem nascem nos ônibus (pelo menos não comumente…). Mas estamos ou não grudados aos coletivos? Creio que dependemos dele. Não temos saída.

Optar pela bicicleta… Nem todos podem ou conseguem, ainda mais, numa cidade com estrutura que pouco respeita o ciclista. Por isso, acho que atitudes como essa da nova administração curitibana são de uma covardia extrema. O que resta? Pegar carona no lado de fora, como o garoto da obra Exclusão do artista argentino Pablo Suarez?

Vamos todos colados aos ônibus para não precisar passar na catraca… Um abraço coletivo no coletivo, grudados a ele como filhos de uma mãe grávida que mal nos carrega. Tentamos abrir espaço, sair para um além em que se respire… Não é fácil, sabemos…

Uma multidão abraçada como para-choque para amortecer acidentes e dores… E será que essa corrente amortiza dívidas, problemas e falta do que colocar na mesa? Não sei, mas luta é luta. Ainda que pareça perdida, não dá para deixar de tentar.

Ainda que no final não sobre muita coisa a não ser o mal-estar e o nojo do vencedor.

E cavar o futuro certo com essa passagem para morrer.

Um comentário em “A vergonhosa passagem

  • 21 de fevereiro de 2017 em 4:50 AM
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    Nao conheço o sistema de transporte publico de Curitiba precisamente, mas uma vez li que todos eram deficitarios, e que sobrevivem gracas q subsidies do governo. Dito isso, concordo que o transporte publico deveria ser melhorado e incentivado. Nao conheco no Brasil sistema de pagamento mensal como tem no exterior, valor fixo, usa-se a vontade. Ou passes diarios ou semanais. Realmente doi abrir a carteira cada vez que precisa do busao…

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Karen Monteiro

Com arte, tá tudo bem. Se as exposições, peças de teatro, shows, filmes, livros servirem de gancho para falar de questões sociais e ambientais, tanto melhor. Jornalista, tradutora, cronista e assessora de imprensa, já colaborou com reportagens para grandes jornais, revistas e TVs.