A necessidade do “nada” na vida das crianças


Disponibilizar tempo para brincar. Mas não meia hora. Meia hora é um tempo muito delimitado. O pensar, o criar, o fazer, o acontecer… não é em meia hora que vai acontecer esse brincar”.

A frase acima é de uma professora de uma das seis escolas brasileiras que se dispôs a olhar o brincar dentro de seu território e com suas crianças, e em diálogo constante com o programa Território do Brincar. Essa troca, que propunha potencializar o brincar dentro e fora da escola, resultou em produções que foram lançadas pelo programa em 2015 – a exemplo do documentário Território do Brincar – Diálogos com escolas e de seu livro homônimo.

Afinal, como disseram os participantes desse diálogo, é necessário tempo largo para que os pequenos brinquem e explorem livremente o que há ao seu redor. Ou, como nas palavras da coordenadora do programa Território do Brincar, Renata Meirelles, precisamos criar oportunidades para a criança poder ser aquilo que ela é. “O ócio é potente na infância para que a criança possa se alimentar daquilo que vem de dentro pra fora”, afirmou a educadora em entrevista.

No entanto, para especialistas, a nossa sociedade não tem investido em tempo, espaço e tampouco circunstância para o brincar dessas crianças. Em palestra no evento trianual do International Play Association (IPA World), cuja última edição aconteceu em setembro em Calgary, no Canadá, o psicólogo e pesquisador Peter Gray alertou que a sociedade atual sofre do que ele chama de Transtorno de Déficit do Brincar.

Baseando-se em análises históricas e sociais dos Estados Unidos e de outros países, o pesquisador chegou à conclusão que, nos últimos 60 anos, houve um forte declínio do brincar. Paralelamente a isso, ocorreu o aumento de depressão, transtorno de ansiedade e suicídio entre crianças e jovens. “O desenvolvimento integral, considerando o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural das crianças, está direta e intrinsecamente relacionado à possibilidade delas brincarem livremente”, afirmou.

Mais informações e referências a esta palestra podem ser encontradas no site do Centro de Referências em Educação Integral e do IPA World (em inglês).

Fato é que o ócio e o “nada” são fundamentais para que as crianças tenham autonomia na realização de seus quereres. O tempo cronometrado, fragmentado, enfraquece a possibilidade de exploração da potência e da imaginação. E sendo assim, corroído pelo acúmulo de horários rígidos, atividades e obrigações, o ócio e tudo aquilo que se desdobra a partir dele vêm perdendo seu espaço.

Nesse sentido, um livro publicado pelo filósofo Byung-Chul Han traz algumas observações relevantes para esse debate. Na obra Sociedade do Cansaço, o autor volta seu olhar para a sociedade deste início de século 21 que, segundo ele, é uma sociedade do desempenho e do trabalho. Somos estimulados 24 horas por dia, sete dias por semana, dispostos a executar múltiplas tarefas concomitantemente e sempre mergulhados em um excesso de estímulos, informações e impulsos.

Desprovidos de tempo livre e de espaço, acabamos sendo consumidos pelo cansaço, destruindo qualquer possibilidade de entrega ao lazer, à festividade e à contemplação. “O excesso da elevação do desempenho leva a um infarto da alma”, afirma o filósofo. “Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som”, diz.

O cenário estabelecido pelo autor dialoga, de certa forma, com a visão de Peter Gray e seu discurso de que é urgente restaurar às crianças o direito de brincar. Como apontou o psicólogo, é inconcebível que familiares e escolas estejam olhando, hoje, para esse momento da vida como uma mera fase de construção de currículo, eliminando todo o potencial lúdico e expressivo da infância.

O brincar permite à criança elaborar o mundo, dá sentido a suas experiências internas e externas, amplia sua compreensão do entorno. Segundo Gray, com a perda do brincar livre, perde-se a essência da infância.

É para essa direção que queremos caminhar? Muito tempo atrás, o escritor mineiro Guimarães Rosa já nos anunciava a importância do elemento contemplativo: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

Por tudo isso, sim: já é tempo de nos posicionarmos em defesa do “nada” na vida das nossas crianças.

Foto: Divulgação/Território do Brincar

10 comentários em “A necessidade do “nada” na vida das crianças

  • 1 de dezembro de 2017 em 8:39 AM
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    Texto maravilhoso este é tb meu pensamento, pois escolas só querem formar robôs rebeldes. Pode-se encontrar escolas ao contraria desta em outros paises como por ex na australia.

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  • 8 de janeiro de 2018 em 1:57 PM
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    Concordo plenamente. Os pais deixam de brincar com os filhos porque não “têm tempo”. Acham que enchê-los de objetos substitui as suas presenças e com isso mantêm os filhos ocupados para não terem trabalho.

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  • 10 de janeiro de 2018 em 8:39 AM
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    Concordo plenamente com as colocações.Estamos ocupados demais e ocupando as crianças demais,sem oferecer a chance que vivam esse momento mágico:o de serem crianças.

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  • 4 de fevereiro de 2018 em 3:09 AM
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    Claro que o tema do artigo é importante. Principalmente quando assinala as capacidades de observar, explorar, contemplar, criar. E não seria maravilhoso para os adultos também?

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  • 22 de março de 2018 em 1:36 AM
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    Precisarmos todos de mais brincar!!! Adultos massacrados pelo seu próprio sistema burocrático- competitivo se afundam e querem levar todos com eles/nós, inclusive as crianças… Vamos todos brincar mais!!! ;)

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  • 26 de março de 2018 em 7:25 PM
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    Uma realidade vivida por nossas crianças. Cabe aos pais, mães e avós investir na observação de suas crianças. Me refiro a palavra observação porque é o que está em extinção nessa nova era. As crianças elas gostam de criar suas próprias brincadeiras e confeccionar os seus brinquedos, nos é que não damos essa oportunidade para elas quando corremos para as lojas e enchemos de plásticos. Leve uma criança ao galinheiro, leve-os para caçar formigas, brincar com argila, com a terra. Deixe-os ociosos e a resposta será positiva: Criança Liberta!

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  • 29 de abril de 2018 em 10:44 AM
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    Maravilhoso texto! Está na hora dos pais acordarem e perceberem o que está acontecendo com seus filhos, ou, o que estão fazendo para seus filhos…

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  • 18 de fevereiro de 2019 em 8:47 AM
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    Perfeito! O brincar livre fez da minha vida adulta muito melhor, lembro até hoje das brincadeiras inventadas e da magia de poder estar assim.

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  • 10 de março de 2019 em 5:46 PM
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    Texto maravilhoso!!! Concordo plenamente!!!

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  • 6 de abril de 2020 em 4:33 AM
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    Obrigada Fernanda, por um texto tão esclarecedor. Nós traz uma reflexão muito séria sobre como está nossa relação com as crianças. E nesta época de quarentena outro dia fiz uma reflexão sobre este tema e a escola:

    Não podemos banir o medo…
    Mas somos capazes de lidar com ele …
    E podemos ver o quanto aprendemos nos últimos dias.
    Temos de pensar que nossas crianças estão muito expostas,
    Precisamos cuidar delas…
    E do medo delas…

    Enquanto temos medo da dor, da doença, do luto…
    Elas têm medo que o mundo se acabe…
    Medo que a mamãe “pegue” o “corona”, o vírus…
    Medo que o papai… “não volte”…
    E agora… as atividades, tantas atividades como ficam?

    Elas querem nos escutar,
    Elas querem a calma que nós queremos…

    Se “rir de tudo é desespero”…
    Dá para perceber o quanto estamos desesperados, dada quantidade de piadas que recebemos e que de certa forma nos fazem esquecer por segundos o inimigo mais invisível que já enfrentamos, porém o mais real.

    Como ele vem? De onde ele vem?
    Não sabemos…

    Mas sabemos como “tentar” evitá-lo!

    Como tentar conte-lo!
    Nosso coração arde, mas não podemos esquecer os pequenos!

    O que ouvimos…
    O que falamos!

    O que eles ouvem?
    O que eles falam?

    A vida é bela (o filme) e creio que para nós, povo criativo e cheio de esperança A VIDA nunca foi TÃO bela…
    *cuidemos das nossas crianças*!!
    Mônica Sena – 2020
    Arte Educadora e Brincante

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Fernanda Peixoto

Formada em Jornalismo pela PUC-SP, é integrante da equipe de Educação e Cultura da Infância, do Instituto Alana