A natureza que ensina

São as borboletas amarelas, que se reúnem aos montes na beira do rio, que avisam aos Yudja, habitantes do rio Xingu, que está chegando o tempo da seca e que as chuvas estão se despedindo da região. 

Os Yudja, assim como outros povos indígenas, fazem leituras de sinais da natureza que indicam a abertura e o fechamento de ciclos. São sinais que marcam o tempo. Embora testemunhem alterações na regularidade e na temperatura que indicam aquecimento e mudanças no clima local, como pode ser visto nos filmes Para onde foram as andorinhas?Quentura, ambos de Mari Corrêa, ainda são os sinais da natureza que orientam grande parte das atividades econômicas e culturais das comunidades, como abertura de roças e o tempo de fazer festas. 

Sua relação com o desenvolvimento das crianças não é diferente. São diversos ciclos que compõem o tempo de cada etapa, de cada processo. O ciclo lunar, em especial, rege uma relação direta com o crescimento e a formação do corpo das crianças.

Durante pelo menos 10 anos convivi com o povo Yudja e tive o privilégio de realizar junto a eles uma pesquisa sobre a infância vivida na aldeia. Parte dessa pesquisa resultou no documentário Waapa, codirigido por mim, Renata Meirelles e David Reeks (do Território do Brincar), e disponível na plataforma Videocamp, que  mostra de maneira bastante sensível a relação intrínseca e simbiótica entre a natureza e o crescimento das crianças da aldeia. 

É quando a lua surge no céu (bem fininha) que é tempo de renovação na Terra, que indica o tempo de crescimento e a aptidão de recepção das coisas do mundo. É nesse período que a lua deixa toda a matéria do mundo mole, apta a ser moldada. Por isso, costumo chamar de lua-criança, porque também é nesse período da vida humana que temos em nossos corpos maior aptidão para recebermos e aprendermos. 

Quando chega essa fase da lua, os adultos yudja, preocupados com a formação das crianças, tomam emprestadas da natureza habilidades importantes para que elas possam viver na floresta. Chamam de remédios as matérias escolhidas da natureza para serem aplicadas no corpo das crianças com a intenção de que transmitam seus dons a elas.  Assim, como elementos da natureza podem ser usados para curar, também podem ser usados para ensinar, para doar conhecimentos aos corpos. 

Logo após a aplicação desses elementos, as crianças yudja são convidadas a praticar essas habilidades por meio da experiência de seus corpos, o que demonstra que a concepção de conhecimento para eles tem relação direta com a experiência.

Para exemplificar essa relação, irei descrever o uso da aranha como princípio ativo. É uma espécie específica de aranha que os adultos capturam de suas grandes teias e fazem com que piquem os dedos das meninas, para que se tornem tão ágeis quanto elas na arte da tessitura. Assim também o fazem com a saracura: passada na panturrilha da criança, a pata dessa ave transmite para seus corpos os dons desse pássaro, que gosta de viver nos pântanos e que por terem asas curtas não voam mas, com suas patas compridas,  correm rápido e são ágeis para a fuga. Assim que passam o remédio, as crianças fazem uma espécie de pega-pega e correr. Pegar e fugir são habilidades incorporadas pela criança. 

Numa simbiose intencional, as habilidades circulam entre corpos humanos e não-humanos. Num gesto de igualdade, são reconhecidas as habilidades animais para compor os corpos humanos, são relações que revelam uma atitude frente à natureza, de respeito e comunhão de habilidades. Uma rede de trocas e interdependência. Revela também uma intencionalidade dos adultos na formação da criança: eles sabem o que elas precisam para que possam ter autonomia e viverem bem. A natureza é a fonte de elementos para compor essa formação através da troca de substâncias entre corpos. 

Se o que entendemos como educação se deve justamente pela ação intencional na formação humana, por que não dizer que estamos diante de uma pedagogia indígena? Eles sabem exatamente o que precisam para tornarem-se legítimos Yudja.

As sociedades indígenas têm muito a nos ensinar, a clareza com que criam seus filhos me impressiona, já que não raro me sinto um pouco atordoada pela profusão de informações sobre maternidade e crianças tão difusas em nossa sociedade. Ocorre-me uma reflexão: será que não temos muita informação e pouco conhecimento sobre nossas crianças? Será que temos clareza sobre nossas intenções ao preparar nossas crianças de fato para a vida? Será que nossos processos educativos são permeados por conhecimentos significativos para a formação e autonomia delas?  

Foto: Renato Soares (autor do blog Ameríndios do Brasil, aqui no Conexão Planeta, inspirado em seu projeto de documentação dos povos indígenas)

Um comentário em “A natureza que ensina

  • 1 de junho de 2019 em 11:44 AM
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    Ao contrário de alguns governantes sem olhos para ver, indígenas não precisam aprender com os brancos, não; nós é que precisamos copiar sua cultura, sua moral e seu adiantado senso comunitário de convivência pacífica, onde corruptos e corruptores nem chegam a nascer ou sobrevivem no espaço de humanos sábios, cuja sabedoria ainda não alcançamos nem alcançaremos se não nos desfizermos da prepotência e do orgulho inúteis e dispensáveis diante deste humanos evoluídos e despojados que preservam o Meio Ambiente a fim de proteger seus bebês e avós. Se indígenas copiassem nosso modelo de viver em sociedade, já teriam matado e morrido há muito tempo, exatamente como temos feito com a nossa raça e com o ecossistema, por falta de competência, vocação e gabarito, apesar de civilizados. Indígenas não precisam de nós e melhor para eles se mantenham à distância, porque humanos mascarados não são confiáveis e não é da natureza deles visitar a nossa tribo.

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Paula Mendonça

Mestre em educação pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre infância indígena. Atuou cerca de 10 anos no Parque do Xingu por meio do Instituto Socioambiental. É co-diretora do curta metragem Waapa, realizado em parceria com o Projeto Território do Brincar. É assessora pedagógica do Programa Criança e Natureza do Alana. Mãe da Nina e Luana.