A guerra, o estupro e o machismo

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Estupro e guerra

Em 1994, o mundo assistiu em silêncio ao genocídio de quase um milhão de pessoas em Ruanda. Uma disputa de etnias – Hutus x Tutsis –, que ao longo de cem dias devastou o país.

As mortes eram executadas com requintes de crueldade e as vítimas mulheres ganharam destaque pela forma como protagonizaram uma das maiores matanças dos tempos modernos. Estima-se que mais de 400 mil mulheres sofreram estupro durante esse período e há relatos de que o crime era cometido em frente à família da vítima, incluindo filhos pequenos.

Muitas dessas mulheres foram mantidas vivas e deram à luz filhos de quem as violentou ininterruptamente. Esse é um dos principais fundamentos antropológicos do estupro: gerar vida no ventre inimigo de forma a exterminá-lo totalmente através da “purificação” e transportar a mulher a uma situação de extrema marginalidade e abandono, uma vez que a violência sexual implica desonra não só para a vítima, mas também para toda a sua família.

Ao final dos cem dias de violência, em julho de 1994, o que sobrou da população ruandesa era composta em sua maioria por mulheres, que ultrapassavam os 70%, muitas delas grávidas e completamente sozinhas. Poucos meses depois foi instalado o Tribunal Penal Internacional de Ruanda, com o objetivo de julgar os responsáveis pelo genocídio e quaisquer violações a leis internacionais e crimes contra a humanidade cometidos durante esse período.

Ao longo do julgamento, não só foram determinadas as penas aplicáveis aos envolvidos, como foi analisada a prática sistemática do estupro que passou a ser considerado arma de guerra.

O machismo e o estupro

Diferentemente do que muitos entendem, o feminismo não é o contrário de machismo. Enquanto o machismo é uma estrutura sociocultural que sobrepõe a figura do homem como autoridade e principal tomador e influenciador de decisões, o feminismo é um movimento social que pleiteia equidade de direitos. Por equidade entenda-se a “disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um”, mesmo considerando suas diferenças.

Justamente por ser uma estrutura sociocultural o machismo pode se apresentar de diferentes formas, muitas delas bastante sutis e enraizadas no nosso cotidiano. Assim como nos ensinam a caminhar quando crianças, nos é ensinado também quais posturas e escolhas cabem isoladamente a meninas e meninos, estabelecendo desde cedo a diferenciação e repressão nos direitos e liberdades. Nessa onda, por óbvio as mulheres saem prejudicadas.Ainda assim, os homens também são submetidos a uma padronagem de gênero que os estimula explicitamente a manter o posto que perpetua essa desvantagem.

Em linhas gerais, o movimento feminista, portanto, tem como beneficiários a sociedade como um todo e não somente as mulheres.

Acontece que dentre as variadas formas de se manifestar o machismo, o estupro pode ser considerada a mais primitiva delas. Violar o corpo de uma mulher sem seu consentimento, configura não só uma violação sexual, mas também a violação moral de alguém que teve a sua dignidade invadida e dilacerada.  Isso se acentua quando colocado à vista da sociedade, que reforça o estereótipo machista culpando a vítima por protagonizar o maior de seus sofrimentos.

O estupro revela a pior face do machismo, mas também da ignorância de uma sociedade que não se aprofunda, que pouco se interessa e quase não se coloca como parte de um todo. Compreender o debate sobre equidade de gênero e cultura do estupro é ato político e necessário para que qualquer sociedade prospere com sustentação e pacificidade.

Estupro e machismo analisados por um homem

Em casos de estupro a psicologia forense afirma que muitos dos padrões causadores desse ato de impor uma vontade pela força física são: superioridade, dominação, virilidade, oportunismo e vingança por traumas passados. Muitos podem ler isso e pensar: “poxa, que triste, tomara que esses criminosos tenham acompanhamento psiquiatra para se curar e pronto. Não é responsabilidade minha”.

Acontece que esses comportamentos estão a nossa volta no dia-a-dia, estão dentro de nós e são parte da cultura, eles certamente exercem uma influência decisiva em nossa personalidade. O que deveria nos preocupar, já que grande parte dos nossos relacionamentos sociais envolvem esses padrões. Na escola você tem que ser o primeiro da turma, ser melhor que todos os outros e futebol é só pra menino macho. Desde meninos somos estimulados a conquistar muitas meninas como se fosse um atestado de vitória. Quando jovens, eles sempre têm que tomar atitude, convidá-las pra sair e pagar tudo. No trabalho sempre existe o chefe, mas independentemente do cargo muitos homem ainda acham que sabem mais que elas.

São padrões sociais sólidos, mas que são mutáveis. Isso pode começar pela conscientização moral de todos os setores da sociedade. É difícil resolver tudo isso? É, claro, mas precisamos querer e isso tem que começar pelos homens que, dentro dessa superioridade toda, não querem nem parar pra refletir. A zona de conforto nos induz diariamente a pensar que é tudo normal porque é bem mais fácil e confortável não termos que pensar e mudar.

A campanha dos 33 Dias sem Machismo (acompanhe a página da campanha no Facebook) provoca e convida, principalmente nós, homens, a praticar um desafio diário para nos reeducarmos e valorizarmos o respeito no simples convívio diário com elas. Sem elas não somos ninguém.

Acredito profundamente que é uma quebra de paradigmas e de comportamento, que exige darmos um passo de cada vez pra transformar.

Respiremos, reflitamos e ajamos! Muitos de nós, temos ou teremos filhas, será que conseguiremos ser cúmplices até com elas sendo desrespeitadas em pequenos atos todo santo dia? Eu não.

Foto: Manifestação no dia 1/6, na Avenida Paulista, São Paulo, por Felipe Brescancini

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Gabriele Garcia e Felipe Brescancini

Apaixonados pela vida, pelas pessoas, um pelo outro e pela missão de trabalhar por um mundo mais justo e igualitário, em 2014, criaram o Think Twice Brasil, movimento de conscientização social e revisão do senso comum que instiga as pessoas a se questionarem, enxergarem a sua função social e se reconhecerem como parte ativa de uma transformação cultural, política e ambiental. Aqui, no Conexão Planeta, falam de equidade de gênero, o papel da mulher na sociedade e suas diferentes perspectivas pelo mundo, a partir do projeto que lançaram este ano e que dá nome ao blog.