35 anos depois do deputado Juruna, povos indígenas continuam sem representação política

Por Maíra Streit*  

Em 19 de abril de 1983, o cacique xavante Mário Juruna subiu ao plenário da Câmara Federal para um discurso histórico em homenagem ao Dia do Índio. “Eu não vim aqui fuxicar com ninguém, eu vim aqui para trabalhar, para defender o povo, eu vim aqui para lutar. Eu quero que gente comece a respeitar nome de Juruna. Eu quero que gente trate índio brasileiro o mais possível dentro do melhor. Cada um de nós tem consciência e cada um de nós tem capacidade. Ninguém tem menos capacidade”.

Combativo e questionador, ele se tornou o primeiro e único parlamentar indígena do país, eleito com 31 mil votos pelo PDT do Rio de Janeiro, com o apoio de figuras emblemáticas do partido, como Darcy Ribeiro e Leonel Brizola. Foi deputado até 1987, período marcado por embates acalorados e ataques sofridos pela mídia e outros políticos, na tentativa de desmoralizá-lo.

Sua marca registrada foi um gravador portátil, que levava a tiracolo para registrar todas as conversas com autoridades, sob o argumento de que a palavra do “homem branco” não tinha valor. “Faz muita promessa e depois esquece tudo”, disse em entrevista ao jornal O Pasquim.

Quase perdeu o mandato ao bater de frente com o governo militar. “Todo ministro é a mesma panelinha, é a mesma cabeça. Não tem ministro nenhum que presta. Para mim todo ministro é corrupto, ladrão, sem-vergonha e mau-caráter. Não vou dizer que todo ministro é bom, legal e justo. Vou dizer que todo ministro é do mesmo saco que aproveita o suor do povo trabalhador”, bradou no Congresso Nacional, provocando a ira do presidente João Figueiredo, que pediu sua cassação. O deputado acabou recebendo apenas uma censura na Casa.

Outra polêmica em que se envolveu foi ao denunciar o empresário Calim Eid, que teria oferecido 370 milhões de cruzeiros para que votasse em Paulo Maluf, opção dos militares às eleições indiretas para presidente da República. Juruna devolveu o dinheiro, relatou o ocorrido em uma coletiva de imprensa e acabou votando em Tancredo Neves, candidato da oposição.

Antes de se despedir do cargo, ele criou a Comissão Permanente do Índio e viu aflorar uma intensa mobilização dos indígenas e seus aliados durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que atuou na elaboração da Carta Magna promulgada em 1988. A nova Constituição simbolizava a transição democrática do país após mais de duas décadas de ditadura, especialmente cruéis para os indígenas, como registrou o relatório da Comissão da Verdade, publicado em 2014. Pelo menos 8.350 indígenas foram mortos entre 1964 e 1985 em massacres, expulsões de terra, remoções forçadas, contágio por doenças e vítimas de torturas e maus-tratos em campos de concentração criados pelos militares.

Na tribuna da Constituinte

A intensa participação indígena no período da Constituinte revelou ao país uma realidade quase desconhecida pelos brasileiros. Centenas de indígenas foram a Brasília e ocuparam gabinetes de parlamentares e o plenário do Congresso. O discurso de Ailton Krenak (vídeo abaixo)– então uma jovem liderança – em setembro de 1987 na tribuna ressoa ainda hoje. Vestindo um impecável terno branco, ele tingia o rosto de preto à medida que ensinava ao país.

“O homem indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para sua existência e para a manifestação de sua tradição, da sua vida, da sua cultura que não colocam em risco – e nunca colocaram – sequer a vida dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas quanto mais de outros seres humanos”, dizia, provocando entre os brancos um “incômodo civilizatório”, como definiu o deputado constituinte José Carlos Saboia (PMDB-MA) em entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA).

O discurso contundente de Krenak pela aprovação da Emenda Popular da União das Nações Indígenas, apoiado por uma mobilização indígena sem precedentes, foi decisivo para assegurar uma identidade cultural própria quanto à organização social, às línguas, à religião e às tradições e estabelecer o direito inalienável sobre seu território – e o Estado como responsável pela demarcação das terras – nos artigos 231 e 232 da Constituição.

A partir daí, criaram-se as condições para que os indígenas retomassem suas terras, preservando suas culturas e a vida de seus descendentes. A população – que era de cerca de 140 mil indígenas à época da Constituição – hoje ultrapassa 800 mil indígenas, segundo os números do IBGE. As articulações políticas também se intensificaram e hoje eles contam com entidades fortes, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), presidida por Sônia Guajajara, pré-candidata pelo PSOL à vice-presidência do Brasil nas próximas eleições. Mas continuam sem representantes no Congresso.

Juruna não conseguiu se eleger novamente e morreu em 2002, aos 58 anos, em um casebre no Guará, cidade próxima a Brasília, depois de um longo tempo com dificuldades financeiras e problemas de saúde que o condenaram a passar os últimos anos em uma cadeira de rodas. Foi velado no salão da Câmara e enterrado na aldeia Barreirinho, na Reserva Xavante São Marcos, hoje Terra Indígena São Marcos, em Barra do Garças (MT)

O neto de Juruna

Embora não tenha tido muita convivência com o avô famoso, Rafael Weree conhece bem essa história. Ele nasceu no ano em que Juruna foi eleito e, hoje, aos 35 anos, atua como presidente nacional do movimento indígena do PDT. Começou a militância política durante o curso de antropologia, na Universidade de Brasília (UnB), e não demorou para perceber que essa seria uma possibilidade de levar adiante a luta pelos direitos dos povos tradicionais, defendidos pela família.

Disputou uma vaga a deputado distrital em 2014, então pelo PCdoB, mas os percalços para se lançar na vida pública não foram poucos. “Quando participei da eleição, não tive apoio nenhum como candidato. Fui com a cara e a coragem, pois a causa era maior do que qualquer coisa. Na minha opinião, a verdadeira democracia está na participação das minorias. Sendo assim, considero que a atual legislatura não representa as populações mais vulneráveis”, afirma.

De fato, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) realizou pela primeira vez o mapeamento dos candidatos usando o critério “cor ou raça”, há quatro anos, a porcentagem de representantes indígenas ficou em último lugar, com 0,32%. Os autodenominados amarelos correspondiam a 0,46%, e os negros foram responsáveis por 9,24%.

Em 2016, o resultado não foi muito diferente. Das 475.351 pessoas que concorreram no pleito municipal, somente 0,34% eram indígenas, etnia com o menor número de participantes. Foram cerca de 1.600. Desse total, 28 competiam pelo posto de prefeito; 57, pelo de vice-prefeito e 1.519, pelo de vereador. Entre os que se identificaram como indígenas, a maioria era do sexo masculino. Foram 72,38% do grupo, enquanto as mulheres ficaram com 27,62% das candidaturas.

O escritor e ambientalista Kaká Werá também apostou na carreira política. De origem indígena, ele foi criado na periferia de São Paulo e desde a juventude acompanhou o processo de demarcação territorial dos guaranis no distrito de Parelheiros e o empoderamento da comunidade local. Tentou uma vaga ao Senado pelo PV paulista, ficando em quinto lugar na votação que culminou na vitória de José Serra (PSDB).

Racismo

A publicação Perfil dos Candidatos às Eleições 2014: sub-representação de negros, indígenas e mulheres: desafio à democracia, lançada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), constatou que o racismo da sociedade brasileira está entre as principais razões para a desigualdade no acesso a cargos eletivos. A falta de apoio financeiro e tempo de exposição na mídia também está entre os motivos para a sub-representação dos indígenas e outras minorias no Congresso. De acordo com o estudo, esses desvios só serão superados com uma profunda reforma no sistema político.

“É preciso que os brasileiros e as brasileiras se vejam nos espaços de poder, que grupos socialmente excluídos possam participar dos processos decisórios, elaborando leis e tomando decisões em prol da sociedade. Isso também contribui para a superação de fenômenos como racismo e sexismo institucionais, rompendo com estruturas de poder tradicionais, herdadas do colonialismo”, enfatiza o texto.

Ainda que conseguissem se eleger, os representantes indígenas dificilmente conseguiriam hoje emplacar suas pautas diante do rolo compressor dos ruralistas como mostraram as reportagens da Pública desta semana.

Cotas

Como observa Oiara Bonilla, professora no Departamento de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), é “justamente no âmbito do Legislativo que estão sendo travadas as disputas mais implacáveis contra seus direitos, adquiridos com a Constituição de 1988 e ao longo de séculos de luta.

Para a professora da UFF, porém, a eleição de parlamentares indígenas ajudaria a frear os avanços do lobby ruralista. Ela cita como alternativa a Proposta de Emenda à Constituição 320/2013, de autoria do deputado Nilmário Miranda (PT-MG), que sugere a criação de quatro vagas especiais para deputados federais que seriam ocupadas por indígenas. Em alguns países da América Latina, como Colômbia e Venezuela, a reserva de cadeiras no Legislativo para esse segmento da população já é uma realidade.

Ela vê com bons olhos a candidatura de Sônia Guajajara (assista à entrevista abaixo) na chapa do coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos. Segundo a professora da UFF, a presença da psolista nos debates pode até não mudar a situação dos indígenas de forma direta, mas deve pautar assuntos relevantes e normalmente esquecidos pela política tradicional.

Fotos: Arquivo Fundação Leonel Brizola

*Esta reportagem foi publicada no dia 25/4/2018 no site da Agência Pública

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Agência Pública / Repórter Brasil

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